Historicamente,
o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido tanto o sentido literal
quanto a vontade do legislador como limites à utilização da
interpretação conforme a Constituição. Nesse sentido, no julgamento da
Representação 1.417, o Plenário optou por não aplicar a técnica, sob
pena de atuar como legislador positivo ao ultrapassar o sentido literal
do texto normativo e a vontade hipotética do legislador. Naquela
oportunidade, afirmou-se que, “se a única interpretação possível para
compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido
inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode
aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que
implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do
legislador positivo”[1].
Não
por coincidência, a postura restritiva, cautelosa, adotada pela Corte
em um primeiro momento, é verificada também em outro julgamento da
relatoria do ministro Moreira Alves. Na ementa da Medida Cautelar na
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-MC) 1.344, consignou-se a
“impossibilidade, na espécie, de se dar interpretação conforme a
Constituição, pois essa técnica só é utilizável quando a norma impugnada
admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a
compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é
unívoco, como sucede no caso presente”[2].
Com
o passar do tempo, a postura adotada inicialmente foi, aos poucos,
sendo relativizada. É difícil apontar as razões que levaram à mudança,
mas nota-se uma contemporaneidade com a assunção, pela Corte, de um
papel mais ativista no cenário político brasileiro.
Assim,
adentrando-se brevemente aqui no perigoso campo das suposições,
verificam-se na jurisprudência do Tribunal controvérsias em que a “Corte
Moreira Alves”[3] provavelmente afastaria a aplicação da interpretação conforme e que foram solucionadas justamente com base nesse mecanismo.
É o que se infere, por exemplo, do julgamento da ADI 1.194[4],
dirigida contra diversos dispositivos do Estatuto da Ordem dos
Advogados do Brasil, entre eles os artigos 21 e 24, parágrafo 3º, assim
redigidos:
“Art. 21. Nas causas em que for parte o empregador, ou pessoa por este representada, os honorários de sucumbência são devidos aos advogados empregados. Parágrafo único. Os honorários de sucumbência, percebidos por advogado empregado de sociedade de advogados são partilhados entre ele e a empregadora, na forma estabelecida em acordo”
“Art. 24. (...) § 3º. É nula qualquer disposição, cláusula, regulamento ou convenção individual ou coletiva que retire do advogado o direito ao recebimento dos honorários de sucumbência”
Na decisão proferida, o Supremo
Tribunal Federal adicionou ao artigo 21 exceção inexistente ao fixar-lhe
interpretação conforme no sentido de que a disposição “deve ser
entendida com a ressalva de que é possível haver disposição contratual
em contrário, ou seguida da expressão salvo disposição contratual em
sentido contrário” (folha 14 do voto do relator). Incluiu-se
implicitamente na disposição a norma segundo a qual “o advogado da parte
vencedora poderá negociar a verba honorária da sucumbência com seu
constituinte”.
A norma criada pela Corte derivaria, em tese, do
disposto no artigo 5º, inciso II, da Constituição, segundo o qual
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei”. Ocorre que é a própria lei que limita, no caso, o
acordo entre empregador e advogado empregado acerca dos honorários
sucumbenciais.
Vê-se, assim, que, calcada no princípio
infraconstitucional da autonomia da liberdade contratual, a decisão
implicou a criação de norma implícita em sentido amplo, contrária à
disposição da qual supostamente derivada e, também, ao disposto no
artigo 24, parágrafo 3º, o qual, por essa razão, teve declarada a sua
inconstitucionalidade.
No mesmo sentido, há também a decisão
proferida na ADI-MC 4.389, em que a interpretação conforme serviu como
mecanismo para criação de norma contrária ao parâmetro constitucional e
às disposições interpretadas.
Eram contestados, no caso, o artigo 1º, caput
e parágrafo 2º da LC 116/2003 e o subitem 13.05 da lista de serviços do
ISS. Na ocasião, a partir do disposto nos artigos 155, inciso II, e
156, inciso III, da Constituição, a Corte conferiu aos dispositivos
questionados interpretação conforme para “reconhecer que o ISS não
incide sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens,
destinadas à integração ou utilização direta em processo subsequente de
industrialização ou de circulação de mercadoria. Presentes os requisitos
constitucionais e legais, incidirá o ICMS”.
Ao assim proceder, o
STF criou norma segundo a qual, ainda que se trate de serviço constante
da Lista do ISS, sobre a impressão gráfica, quando realizada em
embalagens vendidas por encomenda que se destinem a armazenar
mercadorias que serão colocadas em circulação, incide o ICMS e não o
ISS.
Ocorre que a norma criada não pode ser extraída nem dos
preceitos constitucionais utilizados como parâmetro nem das disposições
objeto da ação direta, inclusive por contrariá-los. Explica-se. A
Constituição é clara ao atribuir aos municípios a instituição do Imposto
Sobre Serviços de qualquer natureza, desde que (a) não compreendidos no
artigo 155, inciso II, e (b) definidos em lei complementar. Em relação
ao ponto (a), o artigo 155, inciso II, refere-se apenas aos serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Quanto ao
ponto (b), a União editou a Lei Complementar 116/2003, que lista os
serviços sujeitos ao ISS, e entre eles está a composição gráfica.
A
Constituição define, ainda, em seu artigo 146, inciso I, que cabe a Lei
Complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria
tributária, entre os entes federados. Em cumprimento ao preceito, a LC
116/2003 dispõe em seu artigo 1º, parágrafo 2º, que, para evitar
conflitos, os serviços constantes da lista, salvo exceções expressas,
não se sujeitam ao ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de
mercadorias. É justamente esse o caso da impressão gráfica em
embalagens produzidas sob encomenda para posterior comercialização de
outros produtos. Vê-se, portanto, que o novo comando cria hipótese de
incidência do ICMS e afasta a incidência do ISS.
Esses exemplos
apontam, mais uma vez, o caráter fluido e subjetivo dos limites à
interpretação conforme. A análise dos precedentes da Suprema Corte
mostra que, com o passar do tempo, talvez por influência das muitas
mudanças na sua composição nas últimas duas décadas, ainda que tenham
sido mantidos os mesmos limites ao instituto, verifica-se uma
jurisprudência bastante contraditória sobre o tema.
O próprio
cabimento da interpretação conforme enquanto pedido formulado em ação
direta já foi objeto de debate na Corte, por ocasião da ADI 3.026
(relator ministro Eros Grau, Diário da Justiça de 29 de setembro de
2006). No caso, o Procurador-Geral da República pedia fosse dada
interpretação conforme ao artigo 37, inciso II, da Constituição ao caput
do artigo 79 da Lei 8.906/1994, no sentido de entender-se cabível a
exigência de concurso público para admissão dos contratados sob o regime
trabalhista pela OAB. O dispositivo então impugnado está assim
redigido: “aos servidores da OAB, aplica-se o regime trabalhista”.
Nos
debates travados, o Plenário estabeleceu a existência de ambiguidade
como pressuposto necessário ao cabimento do pedido de interpretação
conforme. Ainda que se abandone momentaneamente a premissa de que toda
disposição admite várias interpretações, não se pode deixar de observar
que a verificação da satisfação de tal requisito confunde-se com a
identificação dos limites de aplicação da técnica.
Ao examinar a
disposição impugnada a fim de constatar a existência, ou não, de
ambiguidade, a Corte necessariamente procede à sua interpretação,
extraindo-lhe o(s) significado(s) possível(is) a partir dos vários
elementos do processo interpretativo. Delineia, assim, a moldura dentro
da qual o intérprete há de se manter para que a interpretação conforme
não adquira contornos de revisão ou integração normativa.
Ressalte-se
que a identificação de todos os significados possíveis de um preceito
legal é uma tarefa inviável. Portanto, a moldura a que se alude é
construída e aperfeiçoada pelo intérprete — no caso o Supremo Tribunal
Federal — a todo momento, à medida que se desenvolve o processo de
interpretação.
Na ADI 3.026, o relator, ministro Eros Grau, a
partir de uma interpretação sistemática do dispositivo, focada no
caráter autônomo e independente da OAB e em suas finalidades
constitucionais, considerou inadmissível o sentido proposto pelo
requerente e rejeitou o pedido. Destacou o aparente sentido unívoco da
disposição, razão pela qual não haveria, “no caso, como se apontar uma
entre várias interpretações que constitucionalmente possa ser
considerada apropriada. Aqui não há mais de uma interpretação possível,
mais de uma norma a ser extraída do texto”[5].
Apesar
de afirmar a univocidade da disposição questionada, decorrente do
regime de Direito privado a que submetida a OAB — razão pela qual seria
inadmissível cogitar-se de concurso público para admissão em seus
quadros —, o voto deixa de analisar questão fulcral para sustentar os
argumentos expostos. É que a disposição então questionada faz expressa
menção aos “servidores da OAB” e, segundo o próprio relator, “o regime estatutário disciplina as relações entre servidores
públicos e a Administração Pública, não sendo extensivo a outras
entidades tão somente porque a criação destas últimas decorreu de lei”[6] (grifou-se).
A mesma consideração é feita pelo ministro Carlos Velloso para
sustentar, em sentido oposto, a ambiguidade do dispositivo, ao asseverar
que “a Constituição Federal não admite ingresso de servidor a não ser
por concurso público”[7]. Já nesse ponto verifica-se a satisfação do requisito da “ambiguidade”.
Ao
analisar mais detidamente a questão, o ministro Cezar Peluso é
categórico ao dizer que “há dúvida, e esta nasce exatamente da
fundamentação, que a suscita sobre a natureza jurídica da OAB, ensejando
duas interpretações: uma, que a OAB é entidade de Direito Privado, e a
outra, que seria de Direito Público”. Assim, chega à conclusão de que
“no primeiro caso, não se exigiria concurso público para preenchimento
do cargo; e, na segunda hipótese, exigir-se-ia, a despeito de o regime
de pessoal ser celetista”[8].
No
mesmo sentido é o posicionamento do ministro Gilmar Mendes, que
identifica, no caso, “uma disposição e duas possíveis normas: a
primeira, que admite a contratação livre num regime tipicamente privado,
e, a segunda, que submete essa contratação a um regime público, por
meio de realização de concurso público”[9].
Discussões
como essa, acerca do cabimento da interpretação conforme e do respeito
aos seus limites, não são muito frequentes nos acórdãos proferidos pelo
Supremo Tribunal Federal. De fato, são poucos os debates em que se
discorre sobre o tema. O que se vê mais comumente são breves objeções de
um ou outro ministro à utilização do mecanismo, as quais são superadas
sem maiores discussões.
Nesse sentido, no julgamento da ADI 3.096,
a aplicação da interpretação conforme foi questionada pelo ministro
Marco Aurélio nos seguintes termos: “Tenho pela dificuldade em não
concluir, pura e simplesmente, pela inconstitucionalidade do preceito,
sob pena de passar-se a atuar como legislador positivo”. A resposta, tão
breve quanto a indagação, veio do ministro Ayres Britto: “Não. Mas a
serventia da interpretação conforme é para isso”.
Conforme se
observa pelos precedentes colacionados, a interpretação conforme a
Constituição, apesar do seu já considerável tempo de incorporação ao
Direito Constitucional brasileiro, ainda não conta com um uso uniforme e
consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que muitas
vezes acaba por proceder a revisões ou mesmo integrações normativas nos
preceitos legais interpretados. Faz-se necessário, portanto, que o tema
continue sendo objeto de análise e discussão, não apenas pela doutrina,
mas, principalmente, pela Corte, que tem na referida técnica, quando
utilizada adequadamente, um importante limite democrático ao exercício
da jurisdição constitucional.
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