Direito Comparado. EUA têm guerra por acesso a publicações científicas, por Otavio Luiz Rodrigues Junior
Há
uma passagem na “Autobiografia de Hans Kelsen”, cuja tradução
brasileira encontra-se na quarta edição, que é muito curiosa e merece
ser transcrita: “o trabalho [a tese de livre-docência de Kelsen] foi
publicado em 1911 com o título Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatz
[Principais problemas da teoria do direito público, desenvolvidos a
partir da teoria da norma jurídica], por J. C. B. Mohr, em Tübingen,
mediante consideráveis custos de impressão que precisei pagar, e formou a
base da minha livre-docência na Faculdade de Direito e Ciência
Política, que ocorreu no mesmo ano”.[1]
Em
uma das riquíssimas notas explicativas à autobiografia, elaboradas por
Matthias Jestaedt, sob coordenação do Instituto Hans Kelsen, tem-se a
real dimensão das circunstâncias desse episódio:
“Paul Siebeck,
então proprietário da editora J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), informou
Kelsen por correspondência de 1.9.1910 que precisaria ser pago, ‘tendo
em vista o caráter teórico de sua pesquisa, um módico subsídio para os
custos de impressão’ de um montante de 15 marcos por folha de impressão
de 16 páginas. Portanto, o subsídio para os custos de impressão para uma
quantidade total de 735 páginas deve ter chegado a cerca de 690 marcos.
Para comparação: em 1910, a renda anual média de um trabalhador
equivalia a 1.078 marcos brutos. O preço de venda dos Hauptprobleme era de 16 marcos (18,50 marcos em capa dura)”.[2]
Uma
das mais importantes obras jurídico-filosóficas do século XX, na qual
se pode dizer está o marco inicial (e mesmo a criação) da Teoria Pura do
Direito, só foi publicada graças à assunção dos custos editoriais por
parte de seu autor, então um jovem e pouco conhecido livre-docente
austro-húngaro. E, segundo o próprio Kelsen, isso ocorreu em uma época
de grandes dificuldades, pois “a situação financeira na casa dos meus
pais alterara-se de modo muito desfavorável”, com a falência da empresa
de seu pai, o que obrigou Hans Kelsen a ministrar aulas particulares
para sobreviver.[3]
Essa
amarga realidade de 100 anos atrás se reproduz em nossos dias. Muitas
editoras jurídicas fecharam, entraram em situação pré-falimentar ou
foram vendidas a grandes grupos internacionais. Não se trata de um
privilégio brasileiro. Pode-se dizer que é um fenômeno internacional.
Das casas publicadoras que remanescem, é nítida a especialização em três
nichos de mercado: a) edições pagas pelos autores (algo impensável há
alguns anos, salvo em gráficas); b) revistas científicas; c) obras para
concursos públicos. As monografias, dissertações e teses caminham para
sua proscrição pelas editoras comerciais. Salvo as publicações
eletrônicas (e-books) e universitárias (em sua maioria tomadas
por livros de outras áreas do conhecimento), essas produções
intelectuais só entrarão no prelo se os autores pagarem, total ou
parcialmente, os custos de impressão. As editoras tradicionais, em sua
maior parte, não aceitam esse modelo, por escrúpulos compreensíveis, o
que tem aberto espaço para pequenas casas publicadoras, algumas mais
antigas, outras recém-criadas. Em muitos casos, o selo editorial é uma
espécie de timbre para se identificar se um livro foi custeado ou não
por seu autor para vir a lume.
Esse mercado editorial “por
encomenda” é grandemente favorecido pelos rígidos controles de
produtividade das agências de fomento ou de regulação da pós-graduação
(no Brasil e no mundo). Além disso, há um novo fator estimulante para
essas edições: os critérios de ingresso ou de promoção em carreiras
públicas. E, por fim, o interesse em divulgar uma firma de advocacia,
com a exposição da obra de um de seus integrantes.
As “revistas
jurídicas” não passaram incólumes pelo dramático processo de
transformação imposto ao mundo editorial pela internet. Antes um
mecanismo essencial de acesso à jurisprudência e à literatura atualizada
sobre temas cuja investigação demandava verticalidade intelectual, as
revistas hoje concorrem com os bancos de dados dos tribunais, que, no
Brasil, são magníficos. E também padecem com a explosão de textos
doutrinários disponíveis livremente na rede.
No Direito, não há a
tradição de se cobrar dos autores pela publicação de artigos em revistas
especializadas. Algumas até pagam um valor simbólico para seus
colaboradores. Nas ciências duras, o quadro é bem diferente. Os
pesquisadores enviam seus artigos para as revistas científicas e pagam
por sua publicação. Suas instituições, por sua vez, assinam esses
periódicos e obrigam-se a restringir o acesso a um número específico de
utentes. A razão para que os autores paguem para ver seus textos
estampados nessas revistas está nos custos com a já famosa “revisão cega
por pares” e com a edição em si.
Em fevereiro de 2012, como
noticiado na imprensa, iniciou-se um boicote contra a maior editora de
periódicos científicos por um grande número de pesquisadores de
Matemática.[4] A carta-manifesto desse boicote é intitulada O custo do conhecimento,
na qual seus autores destacam que o papel das revistas científicas é a
disseminação da pesquisa e de seus resultados, além da revisão por pares
e da evolução profissional.[5]
Esse movimento cresceu e atingiu algumas universidades
norte-americanas. Antes de sua deflagração, o famoso MIT, desde 2009, já
havia adotado a política do “acesso aberto” (open access, em inglês,) a seus artigos acadêmicos.[6]
As editoras reagiram e defenderam que sua existência e sua função
justificam-se pela essencialidade da seleção imparcial, profissional e
organizada dos trabalhos científicos. Sem sua intermediação, não seria
possível que 3 milhões de artigos enviados anualmente às revistas
científicas fossem transformados em 1,5 milhão de textos publicados a
cada ano. A atuação das editoras de periódicos evitaria que os
cientistas despendam tempo com a administração e o custeio dessas
publicações, o que importa o controle de processos de chamada, seleção,
revisão linguística e por pares.[7]
Essa polêmica chegou ao Congresso dos Estados Unidos. Em 2011, apresentou-se um projeto de lei — o Research Works Act
—, com apoio de associações de editoras e de defesa dos direitos
autorais, com o objetivo de proibir que um órgão governamental divulgue
(ou autorize a divulgação) de qualquer trabalho ou pesquisa científicos
sem autorização do respectivo editor. Na prática, é uma forma de impedir
que agências oficiais, que financiaram pesquisas com bolsas ou
subvenções, assumam a titularidade dos respectivos direitos de autor.[8]
Em contrapartida, em fevereiro de 2013, o Congresso norte-americano recebeu um projeto de lei intitulado Fair Access to Science and Technology Research Act of 2013,
que tem por finalidade liberar o acesso de textos científicos
produzidos com base em financiamento público. Na exposição de motivos
desse projeto, diz-se que os Estados Unidos têm interesse em maximizar o
impacto e a utilidade das pesquisas científicas, além do que a internet
tornou possível o acesso imediato e a avaliação dos resultados dessas
investigações para cada cientista, médico, educador ou cidadão, seja em
casa, na escola ou nas bibliotecas.[9]
No
Brasil, desde 12 de fevereiro 2006, a Capes (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), nos termos da Portaria
13, determinou a obrigatoriedade da divulgação, em meio digital, de
teses e dissertações elaboradas nos programas de pós-graduação em
sentido estrito no País.[10] A fundamentação ideológica dessa norma está exposta em seu artigo 5o:
“O financiamento de trabalho com verba pública, sob forma de bolsa de
estudo ou auxílio de qualquer natureza concedido ao Programa, induz à
obrigação do mestre ou doutor apresentá-lo à sociedade que custeou a
realização, aplicando-se a ele as disposições desta Portaria”.
Esses
novos conflitos envolvendo a produção científica, os direitos autorais e
o futuro do mercado editorial devem ser analisados à luz das
transformações da indústria cultural contemporânea. As pessoas hoje não
querem mais pagar para ouvir músicas. O sentimento geral é de que esse
bem cultural está disponível na internet e qualquer forma de
contrapartida seria desnecessária. Essa “nova” perspectiva obrigou os
artistas a voltar ao modelo de negócios do século XIX, antes das
gravações fonográficas: sua renda é majoritariamente extraída das
apresentações a públicos pagantes.
Em relação ao livro e à
produção científica em periódicos, com a expansão de publicações
digitais gratuitas, é muito provável a morte de um modelo negocial que
se estruturou com base no copyright há mais de 300 anos.
[1] KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen.
Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto.
Introdução de Mathias Jestaedt . Estudo introdutório de Otavio Luiz
Rodrigues Junior e José Antonio Dias Toffoli. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2012. p. 44
[2] KELSEN, Hans. Op. cit. 45
[3] KELSEN, Hans. Op. cit., loc. cit.
[4] Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/1046769-cientistas-boicotam-a-maior-editora-de-periodicos-do-mundo.shtml. Acesso em 7-5-2013.
[5] Disponível em http://thecostofknowledge.com/. Acesso em 7-5.2013.
[6] Disponível em http://web.mit.edu/newsoffice/2009/open-access-0320.html. Acesso em 7-5-2013.
[7] Disponível em http://www.elsevier.com/about/issues-and-information/elsevierstatement. Acesso em 7-5-2013.
[8] Disponível em http://thomas.loc.gov/cgi-bin/bdquery/z?d112:h.r.3699:. Acesso em 7-5.2013.
[9] Disponível em http://doyle.house.gov/sites/doyle.house.gov/files/documents/2013%2002%2014%20DOYLE%20FASTR%20FINAL.pdf. Acesso em 7-5-2013.
[10]
BRASIL. Ministério da Educação. CAPES. Portaria 13. Art. 1º : “Para
fins de acompanhamento e avaliação destinados à renovação periódica do
reconhecimento, os programas de mestrado e doutorado deverão instalar e
manter, até 31 de dezembro de 2006, arquivos digitais, acessíveis ao
público por meio da internet, para divulgação das dissertações e teses
de final de curso”.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é
advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em
Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la
Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación
Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor Jurídico, 8 de maio de 2013
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