1. INTRODUÇÃO
A sucessão do companheiro é regulada pelo artigo 1.790 do
Código Civil, que dispõe que “a companheira ou o companheiro participará
da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na
vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com
filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for
atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da
herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se
concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da
herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à
totalidade da herança”.
De acordo com o dispositivo os primeiros a serem chamados para
concorrer com o companheiro sobrevivente são os descendentes. De acordo
com o inciso I, se concorrer com filhos comuns, o companheiro terá
direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho.
Por outro lado, se concorrer com descendentes só do autor da herança,
tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles. Se concorrer com
descendentes comuns e exclusivos do autor da herança (filiação híbrida) a
lei não previu solução, restando ao interprete suprir a lacuna
normativa.
Todavia a determinação da parte que compete aos descendentes do
companheiro depende, primeiro, de que sejam seguidas algumas etapas:
1ª Etapa: deverá ser verificado o regime de bens aplicável à
união estável. Se não houver contrato de convivência com cláusula
prevendo o regime, deverá ser considerado como aplicável o da comunhão
parcial, conforme determinação do artigo 1.725 do Código Civil.
Identificado o regime deverá ser separada a herança da meação. A meação é
direito próprio do companheiro que decorre do regime de bens e não
entra na regra do artigo 1.790 do Código Civil.
2ª Etapa: Após entregar a meação ao companheiro sobrevivente,
deverá ser verificado dentre os bens que compõe a herança do companheiro
falecido quais foram adquiridos onerosamente na constância da união
estável, separando a herança em dois blocos, em duas sub-heranças: a
primeira com os bens adquiridos onerosamente durante a relação e a
segunda com os demais bens.
3ª Etapa: com relação à primeira sub-herança, a divisão deverá
ser feita com base nos incisos do artigo 1.790 do Código Civil. Já com
relação à segunda sub-herança, da qual o companheiro não participa, a
divisão deverá ser feita com base no artigo 1.829 e seguintes do Código
Civil.
No caso do companheiro ter deixado descendentes a primeira sub-herança
(composta pelos bens adquiridos onerosamente durante a união estável)
deve ser dividida entre o companheiro sobrevivente e os descendentes
conforme o disposto nos incisos I e II do artigo 1.790 do Código Civil.
Quanto à segunda sub-herança (composta pelos bens adquiridos
antes da união estável ou durante a união estável, mas a título
gratuito) deverá ser dividida exclusivamente entre os descendentes.
Vejamos, agora, como deve ser feita a divisão entre o companheiro
sobrevivente e os demais herdeiros de acordo com o tipo de filiação:
2. FILIAÇÃO COMUM
Se o companheiro concorrer com filhos comuns (isto é, filhos de ambos
os companheiros), terá direito a uma quota equivalente à que por lei
for atribuída a cada filho (art. 1.790, I, CC). Impende observar que a
lei fala apenas em filhos comuns e não descendentes comuns. Adotando-se
uma interpretação literal do dispositivo, com a exclusão dos demais
descendentes (netos, bisnetos etc.) da incidência da norma, chegar-se-ia
à absurda conclusão de aplicabilidade do inciso III a estes.
Sobre a questão a doutrina é praticamente unânime em apontar que o
equívoco legislativo deve ser resolvido com a adoção de interpretação
extensiva, aplicando-se a regra prevista no inciso I não somente aos
filhos comuns como também aos demais descendentes comuns. Deste forma,
onde está escrito filho, deve-se ler descendente. Nesse sentido:
GISELDA HIRONAKA, SEBASTIÃO AMORIM, EUCLIDES DE OLIVEIRA, ROLF MADALENO,
ZENO VELOSO, FRANCISCO CAHALI, FLÁVIO TARTUCE e JOSÉ FERNANDO SIMÃO[1].
Procurando afastar qualquer dúvida sobre a questão, durante a
realização da III Jornada de Direito Civil, o Conselho da Justiça
Federal (órgão vinculado ao Superior Tribunal de Justiça), aprovou o
Enunciado 266, nos seguintes termos: “aplica-se o inciso I do art. 1.790
também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com
outros descendentes comuns e não apenas na concorrência com filhos
comuns”.
Exemplificando: se uma pessoa faleceu deixando companheiro, 2
filhos comuns e uma herança de 600 mil reais, dos quais 300 mil reais se
referem a bens adquiridos onerosamente durante a união estável (1ª
sub-herança) e o restante não (2ª sub-herança). Como ficará a divisão
dos bens?
1ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$100 mil / Filho B: R$100 mil / Companheiro: R$100 mil
2ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$150 mil / Filho B: R$150 mil
3. FILIAÇÃO EXCLUSIVA
Se o companheiro sobrevivente concorrer com descendentes só do autor
da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles
(artigo 1.790, II, CC). Nesta hipótese o Código Civil não se referiu a
filhos e sim a descendentes, afastando por completo qualquer discussão
quanto ao alcance da norma. Procurando facilitar a aplicação do mesmo,
ao invés de afirmarmos que o companheiro receberá a metade da cota de
cada um dos descendentes exclusivos, recomendamos a seguinte leitura: o
companheiro receberá uma quota da herança ao passo que cada descendente
exclusivo receberá duas quotas. Desta forma, a solução de qualquer
problema prático se torna mais simples.
Exemplificando: se uma pessoa faleceu deixando companheiro, 2
filhos exclusivos e uma herança de 600 mil reais, dos quais 300 mil
reais se referem a bens adquiridos onerosamente durante a união estável
(1ª sub-herança) e o restante não (2ª sub-herança). Como fica a divisão?
1ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$120 mil / Filho B: R$120 mil / Companheiro: R$60 mil
2ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$150 mil / Filho B: R$150 mil
4. FILIAÇÃO HÍBRIDA
Como afirmado anteriormente, o Código Civil de 2002 foi omisso no que
diz respeito à filiação híbrida, caracterizada como aquela em que o
falecido deixou descendentes comuns e exclusivos. Diante da lacuna
normativa existente resta ao estudioso do direito interpretar as regras
previstas nos incisos I e II do art. 1.790 para determinar a forma pela
qual a herança será dividida entre os descendentes e o companheiro do
falecido. Com esse intuito podem ser apresentadas as seguintes
correntes:
1ª CORRENTE: QUOTA IGUAL
Baseia-se na interpretação literal e sistemática do art. 1.790, para
defender que deve ser aplicado o inciso I à filiação híbrida,
garantindo-se ao companheiro uma quota igual a de todos os filhos [2]. Isto, pois, o inciso II utilizou a expressão “descendentes só
do autor da herança” (limitativa) ao passo que o inciso I não limitou a
aplicação da regra lá prevista. Além desse argumento, deve ser lembrado
que a aplicação do inciso I vai de encontro ao princípio da igualdade
entre os filhos.
Podemos apontar como defensores desta corrente: CAIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA, SILVIO VENOSA, JOSÉ FRANCISCO CAHALI, ROLF MADALENO, MARIO
DELGADO, JOSÉ FERNANDO SIMÃO, RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, JORGE FUJITA [3].
2ª CORRENTE: METADE DA QUOTA.
Defende exatamente o oposto da primeira corrente, entendendo que o
dispositivo que deve regular a situação é o inciso II do art. 1.790.
Desta forma, o cônjuge terá direito a uma quota correspondente à metade
do quinhão que for atribuído a cada filho. Embora a solução seja diversa
da 1ª corrente, também há o respeito ao princípio constitucional da
igualdade entre os filhos.
Defendem esta corrente: MARIA HELENA DINZ, EUCLIDES DE OLIVEIRA, ZENO VELOSO, FLÁVIO TARTUCE e SEBASTIÃO AMORIM [4].
3ª CORRENTE: FÓRMULA MATÉMATICA
Apresentando fórmulas matemáticas alguns autores como MARIA BERENICE DIAS [5], FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS [6],
GABRIELLE TUSA e FERNANDO CURI PERES, têm defendido a aplicação
simultânea dos dois dispositivos. Propõem que a partir do número de
filhos exclusivos e comuns seja encontrado um coeficiente que esteja
dentro dos limites dos dispositivos.
Desta forma, a quota do companheiro não será igual à dos descendentes
e também não será correspondente à metade. Encontra-se um coeficiente
(um meio-termo) entre esses limites. Procurando elucidar a questão,
apresentamos abaixo a fórmula apresentada por GABRIELLE TUSA e FERNANDO
CURI PERES [7]:
X = 2 ( F + S ) . H (X = QUINHÃO DE CADA UM DOS FILHOS)
2 (F + S)² + 2 F + S
C = 2 F + S . X (C = QUINHÃO DO COMPANHEIRO)
2 (F + S)
LEGENDA:
X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos
C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.
F = o número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente.
S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
Exemplificando: se uma pessoa faleceu deixando companheiro, 1
filho exclusivo, 1 filho comum e uma herança de 600 mil reais, dos quais
300 mil reais se referem a bens adquiridos onerosamente durante a união
estável (1ª sub-herança) e o restante não (2ª sub-herança). Como ficará
a divisão dos bens?
1ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$109 mil / Filho B: R$109 mil / Companheiro: R$82 mil
2ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$150 mil / Filho B: R$150 mil
4ª CORRENTE: DISTINÇÃO ENTRE OS DESCENDENTES
Defende que a herança deve ser divida em dois blocos,
formando-se sub-heranças, uma dos filhos comuns e outra dos filhos
exclusivos. Com relação à herança dos filhos comuns, o companheiro teria
uma quota igual à deles. Com relação à herança dos filhos exclusivos o
companheiro receberia uma quota proporcional à metade da dos
descendentes.
Em nossa opinião a solução proposta por esta corrente viola o
princípio constitucional da igualdade de tratamento entre os filhos, por
isto não deve ser utilizada em hipótese alguma [8].
Exemplificando: se uma pessoa faleceu deixando companheiro, 1
filho exclusivo, 1 filho comum e uma herança de 600 mil reais, dos quais
300 mil reais se referem a bens adquiridos onerosamente durante a união
estável (1ª sub-herança) e o restante não (2ª sub-herança). Como fica a
divisão? Neste caso a 1ª sub-herança teria que ser divida em duas
partes. Vejamos:
1ª Sub-herança: R$ 150 mil (1ª parte)
Filho Comum: R$75 mil / Companheiro: R$75 mil
1ª Sub-herança: R$ 150 mil (2ª parte)
Filho Exclusivo: R$100 mil / Companheiro R$50 mil
2ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$150 mil / Filho B: R$150 mil
[1]
A posição de todos os autores pode ser verificada em quadro indicativo
presente na obra de CAHALI, Francisco José e HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. vol. 6. São Paulo: Editora RT, 2007 p. 191 e ss.
[2]
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUCESSÕES. INVENTÁRIO. CONCORRENDO A
COMPANHEIRA COM FILHA COMUM DO CASAL E FILHOS EXCLUSIVOS DO DE CUJUS,
POSSUI ELA DIREITO À HERANÇA, NOS MOLDES DO ART. 1.790, I, DO CCB.
RECURSO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70018904763, 7ª Câmara Cível,
TJRS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 23/05/2007).
[3]
A posição de todos os autores pode ser verificada em quadro indicativo
presente na obra de GISELDA HIRONAKA e FRANCISCO JOSÉ CAHALI. Curso avançado …, p. 191 e ss.
[4] Idem.
[5]
Utilizando uma fórmula diversa da proposta por GABRIELLE TUSA, MARIA
BERENICE DIAS chega aos mesmos resultados no problema que soluciona em
seu Manual das Sucessões. De acordo com a autora, “o valor do quinhão a
ser recebido pelo sobrevivente varia conforme a existência de maior ou
menor número de descendentes, comuns ou exclusivos. Quanto mais numerosa
for a prole comum, maior a participação do companheiro. O quantum
diminui na medida em que concorre com mais herdeiros com quem não tem
vínculo de filiação. Ainda que complicado, este é o único jeito de
respeitar o comando constitucional da igualdade entre os filhos, sem
trazer prejuízo ao companheiro sobrevivente. Esta divisão não está
prevista na lei, mas respeita a vontade do legislador explicitada nos
incisos I e II do art. 1.790 do CC” (Manual das sucessões.São Paulo: Editora RT, 2008, p. 180).
[6] Manual de direito civil. vol. 4. São Paulo: Método, 2004, p. 215.
[7] TUSA, Gabrielle. Sucessão do companheiro e as divergências na interpretação dos dispositivos referentes ao tema. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (coord.). A outra face do poder judiciário. Decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. vol. 2. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 313 e ss. A fórmula é reproduzida em artigo publicado por CLAUDIA STEIN VIEIRA (Direito das sucessões no código civil de 2003. Revista do Advogado. São Paulo: AASP. Ano XXVII, n. 91, maio 2007, p. 46 e ss.).
[8]
A solução proposta por esta corrente é explicada por GISELDA MARIA
FERNANDES NOVAES HIRONAKA, embora deva ser destacado que a autora não
concorda com a sua aplicação. (Comentários ao código civil: parte especial: do direito das sucessões, vol. 20. Coord. Antônio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 63/64).
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