A Constituição Federal de 1988 protege a diversidade e o patrimônio
genético do país, no artigo 225, parágrafo 1º, inciso II. Ela foi
complementada pela adesão do Brasil à Convenção da Diversidade Biológica
(CDB), pactuada na Rio-92 e incorporada ao nosso sistema jurídico
através do Decreto 2.159, em 1998.
Na redação da CDB, artigo 2,
diversidade biológica "significa a variabilidade de organismos vivos de
todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas
terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos
ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro
de espécies, entre espécies e de ecossistemas".
Diversidade
biológica não é tema fácil para os profissionais do Direito. No entanto,
seu interesse para a área jurídica vem aumentando, seja por sua
relevância na questão ambiental, seja pelos aspectos econômicos que
encerra quando ligada às patentes.
A biodiversidade está em toda
parte, inclusive nos oceanos. Todavia, ela se mostra mais rica nos
biomas, que são grandes ecossistemas com certa homogeneidade. Nossa
Constituição reconhece no artigo 225, parágrafo 4, cinco biomas:
Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Serra do Mar, Pantanal
Mato-Grossense e Zona Costeira.
Segundo o site do Ministério do Meio Ambiente,
a nossa biodiversidade é a maior do mundo. Quanto ao seu valor
econômico “os serviços ambientais que ela proporciona — enquanto base da
indústria de biotecnologia e de atividades agrícolas, pecuárias,
pesqueiras e florestais — são estimados em 33 trilhões de dólares
anuais, representando quase o dobro do PIB mundial.
Muito embora
sejamos possuidores deste rico patrimônio, dele não temos tirado
proveito. Além disto, como bem observa Vladimir Garcia Magalhães, “as
empresas dos países desenvolvidos muitas vezes têm procurado se apossar
dos recursos biológicos, com potencial ou real valor comercial,
existentes nos países com grande diversidade, normalmente através da
biopirataria, ou seja, de modo ilícito, contrariando o direito nacional
dos países onde estão esses recursos...” (Propriedade intelectual, biotecnologia e biodiversidade, Fiúza, p. 65).
Vejamos como o Direito trata a matéria, fixando os comentários à Região Amazônica, que possui o mais rico bioma.
Penetrar
no arcabouço jurídico que trata da matéria é algo tão complexo quanto
fiscalizar as atividades de estrangeiros na selva amazônica. Temos
dispositivos conflitantes na CDB e no Trips, que é o Trade-Related
Aspects Intelectual Property Rights. Vejamos.
A CDB reconhece aos
Estados o direito sobre seus recursos biológicos, estimula o pagamento
pelo conhecimento imemorial das populações tradicionais, aprova o
desenvolvimento sustentável no uso da biodiversidade e o direito de uma
justa distribuição dos recursos genéticos, sob condições previamente
acertadas com os países da origem. Já a Trips, menos enfática, afirma
que os Estados podem ter direitos sobre plantas e animais, não reconhece
nenhum direito das populações tradicionais sobre seu conhecimento, mas
tão somente as patentes sobre o que for considerado novo, e nega a
necessidade de reconhecimento do país de origem.
Na verdade, o
TRIPS impôs aos países aderentes a uniformização de suas leis sobre
propriedade industrial. Por tal motivo, no Brasil foi editada a Lei
9.279/96, que não considera a descoberta de algo existente em uma planta
ou animal como uma invenção e, consequentemente, não prevê a repartição
dos lucros entre quem a explora e o país de origem ou as populações
tradicionais.
Para regulamentar a matéria, foi editada a Medida
Provisória 2.186-16, de 2001, que só permite o acesso aos conhecimentos
tradicionais com a autorização da União e exige que sejam utilizados com
partilha dos lucros. A MP é boa, todavia, até hoje não foi examinada
pelo Congresso, gerando forte insegurança jurídica.
Em meio a tal
situação, a exploração da nossa biodiversidade passa ao largo da
proteção jurídica. Pesquisa realizada no site dos Tribunais de Justiça
do Amazonas, Pará, Acre, Roraima e Amapá, todos da Região Norte,
colocando-se as palavras “biodiversidade” e “populações tradicionais”,
não revelou a existência de nenhum precedente. A inexistência é o
resultado da falta de ações. Sem fiscalização (autuações) ou
conscientização da sociedade (ação popular ou civil pública) e das
autoridades para a importância do tema, o Judiciário não será provocado
e, por consequência direta, não terá jurisprudência.
Vejamos como têm sido solucionados os poucos casos em que matéria é discutida.
Em
outubro de 1979, a fiscalização ambiental do Acre, sob a iniciativa da
promotora Patrícia Rego Amorim, apreendeu na cidade de Cruzeiro do Sul
137 plantas, sementes, hastes e bulbos, transportadas, sem licença, para
a empresa Selva Viva, de propriedade dos estrangeiros Jacob Edwin e
Oscar Valstar. Em 15 de fevereiro de 2005 o juiz federal no Acre, David
Abreu Pardo, sentenciou determinando o encerramento das atividades da
empresa.
Com maior repercussão transcorreu o “caso Cupuaçu”.
Trata-se de fruta utilizada no Amazonas e no Peru, para a fabricação de
sorvete, geleia e chocolate, além do que é usada pelos índios Tikuna
como remédio contra dor abdominal. Ocorre que a Asahi Foods registrou a
marca com o nome da fruta no Japão, EUA e Europa. A União Federal e 513
entidades da Amazônia entraram com ação e conseguiram na Cancellation
Division of the European Union, após cinco anos, revogar a autorização
do nome Cupuaçu pela empresa japonesa, em todos os países da União
Européia. Com isto, tornou-se possível a empresas da Amazônia exportar o
produto sem qualquer pagamento à Asahi Foods.
Outro caso
importante é o do Açaí, fruta considerada energética, muito utilizada na
Amazônia em sorvete, suco e doces. Referida fruta encontra-se
patenteada nos Estados Unidos desde março de 2001. Não se tem notícias
de partilha dos lucros. Conhecida empresa brasileira procurou junto ao
Governo Federal obter autorização para a realização de pesquisas
científicas, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico do açaí com
envio de amostras do patrimônio genético para o exterior. Todavia,
decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, acolhendo
recurso do órgão púbico, determinou que a interessada exibisse contratos
de utilização do patrimônio genético e demonstrasse plano de partilha
dos lucros (AI 0016354-16.2011.403.6105, juiz Roberto Lemos, em 31 de
agosto de 2011).
Como se vê, estamos diante de uma área do
Direito pouco conhecida e explorada, que mescla temas ambientais com
direito ao uso de patentes. Isto pode ser visto como uma vantagem para
os profissionais do Direito que se interessem pela matéria, já que a
concorrência será pequena.
É importante que a ela se dê maior
atenção, sempre tendo em mente que, muito embora seja de absoluta
importância a realização de pesquisas pela indústria farmacêutica e a
descoberta de novos medicamentos para as doenças que atingem milhões de
pessoas ao redor do mundo, é preciso que os lucros decorrentes dessa
atividade econômica sejam compartilhados com os países detentores dos
recursos naturais e com as populações tradicionais, que muitas vezes,
ingenuamente, transmitem seus conhecimentos a terceiros sem nada receber
em troca.
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