O Orçamento é o locus adequado para a realização das escolhas trágicas públicas, também chamadas de escolhas políticas[1].
É no espaço democrático do Parlamento que devem ser realizadas as
opções políticas referentes às receitas e aos gastos públicos que
determinam o caminho escolhido pela sociedade para a realização de seus
ideais. Mesmo aqueles que têm de ser construídos dia a dia — ninguém
dorme em uma ditadura e acorda em uma “sociedade livre, justa e
solidária” (art. 3º, I, CF) no dia seguinte — embora exista quem entenda
ser possível fazer efetivas mudanças sociais a golpes de caneta.
Considerando
que a receita pública advém em sua maior parte das receitas
tributárias, e que esta arrecadação no Brasil atual gira entre 35% e 36%
do PIB, os olhos da sociedade devem se voltar mais do que nunca para o
gasto público, para as escolhas que devem ser democraticamente feitas no
Congresso em prol da sociedade — e que, em tese, são feitas pela
própria sociedade.
É o Poder Legislativo que detém a chave do
cofre público para a realização dos gastos. E é a ele que a sociedade
confere poderes para a realização dessas escolhas trágicas. Se,
no Brasil, os canais democráticos para a escolha e a deposição de
nossos parlamentares estão parcialmente obstruídos, devemos ter
redobrada atenção e concentrar nossos esforços para resolver este
problema. O procedimento usual para as escolhas trágicas no Brasil
contemporâneo é atribuí-las ao Judiciário a exemplo de diversas
situações sobre o direito à saúde (o que é errado na maior parte dos
casos), ou ainda, ao Executivo — cujo âmbito de atuação deve ser
delimitado pelas grandes linhas estabelecidas no Parlamento.
Não existem direitos sem custos para sua efetivação[2].
Não se trata aqui apenas dos direitos sociais, mas de todo e qualquer
direito, fundamental ou não. Pode-se imaginar que alguns direitos de
liberdade, tais como o de ir e vir, o de liberdade de expressão ou de
liberdade religiosa seriam direitos sem custos, mas um segundo olhar
indicará ser falsa esta suposição, pois pelo menos é necessária a
manutenção de um aparato institucional para sua defesa e manutenção.
Mesmo o pregador religioso que sobe em um caixote e discursa no meio de
uma praça pública requer um mínimo de custos para o Poder Público, ao
necessitar de recursos para protegê-lo e para a habitabilidade (limpeza e
manutenção mínimas) daquele logradouro.
Desta maneira, o sistema
orçamentário brasileiro funciona como um funil para o planejamento, na
medida em que estabelece o vínculo das disposições constitucionais aos
ditames do cotidiano normativo, permitindo a vinculação financeira de
uma espécie normativa às outras. De que adianta proclamar em alto e bom
som o “direito à educação” se no orçamento os recursos para tal fim são
restritos ou inexistentes? Ou, por outro lado, se os recursos são
superestimados para um direito social e subestimados para outros? É na
análise do sistema orçamentário que isso será percebido.
É no
âmbito do processo de elaboração do Orçamento — que deveria ser de
atuação privilegiada do Poder Legislativo — que se realizam as primeiras
escolhas trágicas, mesmo com os recursos vinculados estabelecidos pelo “orçamento mínimo social”.
Os
economistas possuem uma expressão bastante interessante, denominada
“Limite do Orçamento”, que Amartya Sen, com sua perspicácia habitual,
comenta como sendo “onipresente”, pois “o fato de que cada consumidor
deva fazer suas escolhas não significa que não existam limites
orçamentários, mas simplesmente que a escolha deve ser feita
internamente ao limite orçamentário ao qual cada indivíduo deve
adequar-se. Aquilo que vale para a economia elementar vale também para a
decisão política e social de alta complexidade”[3].
Esta expressão foi trasladada para o Direito a partir de uma decisão proferida em 1972 pelo Tribunal Constitucional alemão[4],
com o nome de “Reserva do Possível”. O significado é o mesmo: todo
orçamento possui um limite que deve ser utilizado de acordo com
exigências de harmonização econômica geral. Desta forma, ao decidir pela
inconstitucionalidade da limitação de vagas imposta pela Universidade
da Baviera, o Tribunal Constitucional Alemão entendeu que existe uma
limitação fática, condicionada pela “reserva do possível, no sentido do
que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade.
Isso deve ser avaliado em primeira linha, pelo legislador, em sua
própria responsabilidade. Ele deve atender, na administração de seu
orçamento, também a outros interesses da coletividade, considerando as
exigências da harmonização econômica geral”.
É importante observar
que esta expressão vem sendo bastante maltratada pela jurisprudência
brasileira, que a hostiliza de maneira praticamente unânime, tudo indica
que em virtude de sua má-compreensão. Ela vem sendo entendida como se
existisse um complô no seio da Administração Pública para esconder
recursos públicos visando não cumprir as determinações judiciais e não
implementar os direitos fundamentais sociais, sendo a “reserva do
possível” uma tentativa de refúgio das ordens judiciais. Ingo Sarlet
alerta em sentido correlato, com muita precisão para “o que tem sido, de
fato, falaciosa, é a forma pela qual muitas vezes a reserva do possível
tem sido utilizada entre nós como argumento impeditivo da intervenção
judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no campo da
efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social”[5]. Ou seja, o uso genérico acaba por matar a expressão tornando-a apenas mais um argumento do manancial de fast food
jurídico à disposição dos operadores para uso como bem aprouver, sem
qualquer respeito à dogmática do Direito — procedimento metralhado
diuturnamente por Lenio Streck em sua coluna nesta ConJur.
Infelizmente
não é isso. “Reserva do possível” é um conceito econômico que decorre
da constatação da existência da escassez dos recursos, públicos ou
privados, em face da vastidão das necessidades humanas, sociais,
coletivas ou individuais. Cada indivíduo, ao fazer suas escolhas e
eleger suas prioridades, tem que levar em conta os limites financeiros
de suas disponibilidades econômicas. O mesmo vale para as escolhas
políticas que devem ser realizadas no seio do Estado pelos órgãos
competentes para fazê-lo.
Neste sentido, o conceito de escolhas
trágicas é aplicável tanto à impossibilidade econômica que cada um de
nós tem para o atendimento de nossas necessidades particulares, como de
toda a sociedade para atendimento de suas necessidades por parte dos
cofres públicos — daí a utilização do conceito como escolhas políticas.
Este conceito — “reserva do possível” — utilizado no âmbito do direito
público nos insere no universo financeiro, da extensão das necessidades
públicas em face da escassez de recursos. Serve em nosso cotidiano
privado (quando ocorre o estouro do cartão de crédito ou quando o mês é maior que o salário) quanto no quotidiano público, nas escolhas trágico-políticas.
Observamos
que não se deve confundir a “reserva do possível de caráter econômico”,
mais próxima do conceito de “escassez”, com a “impossibilidade
técnica”. Haverá impossibilidade técnica quando, por exemplo, um
medicamento ainda estiver sendo produzido em caráter experimental — o
que poderá ocasionar que indivíduos desejem adquiri-los, mas sua escala
de produção ainda não chegou à etapa industrial, pois ainda se encontra
em fase de testes. Haverá escassez quando a produção atinge o nível
industrial, mas ainda é insuficiente para atender a todos os
consumidores, como bem ensina José Reinaldo Lima Lopes[6].
O conceito de reserva do possível pública está casado com outro, muito caro aos direitos sociais, que é o da progressividade
na concretização desses direitos. Os direitos prestacionais, tal como o
direito à saúde, não são direitos que se disponibilizam integralmente
de uma única vez. São direitos fornecidos progressivamente pelo Estado,
de modo que, passo a passo, em um ritmo crescente, ele se torna cada vez
mais concretizado — o que não ocorre com outros direitos, tal como o de
maioridade, a qual se obtém de um dia para outro — literalmente. Os direitos sociais são direitos implementados à prestação, de forma progressiva.
Certamente
estes conceitos merecem ser melhor analisados, em espaço mais amplo,
seja no âmbito da receita, despesa, orçamento, crédito e tudo o mais
que, de alguma, forma influa na jornada do homem sobre a terra, vivendo
em sociedade — objeto final do estudo do Direito.
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