O
título deste artigo já por si deveria provocar todos os nossos alarmes e
cuidados. É certo que, contemporaneamente, na moderna teoria e
dogmática constitucional, poucos colocam em questão o fato de que não
possa existir hierarquia entre os direitos fundamentais. Num quadro em
que o próprio poder constituinte — é o caso do Brasil — se eximiu de
estabelecer qualquer prevalência — em abstrato — de qualquer dos bens
tutelados por normas de direitos fundamentais, consentir com que tal
hierarquia fosse fixada por órgãos que têm apenas a função de
interpretar e concretizar a Constituição seria — em antiga advertência
de Francisco Campos — aceitar que esses órgãos tivessem primazia sobre o
próprio poder constituinte.
Infelizmente, contudo, a conclusão de
ausência de hierarquia entre direitos fundamentais — que é correta —
acabou vulgarizando a ideia de que direitos fundamentais tão importantes
— como a vida — podem ser preteridos sem maior consideração e de forma
precipitada. A ideia de que o direito à vida, por exemplo, possa, em
situações extremas, ceder diante de outros bens constitucionalmente
protegidos não pode ser confundida com a certeza hoje já popularizada de
que essa preterição possa ser promovida de forma imprudente e
irrefletida.
Para ficar em exemplo conhecido, a afirmação genérica
e abstrata de que o direito à liberdade e de autodeterminação da mulher
prevaleceria sempre e sempre sobre o direito à vida no caso do aborto é
uma dessas precipitadas generalizações que temos o dever constitucional
de evitar. A vida pode ceder diante de outros direitos fundamentais —
isso é certo —, mas apenas em situações excepcionalmente fundamentadas,
em que a carga argumentativa se manifeste induvidosamente a favor de
outros direitos fundamentais. Para nosso infortúnio, contudo, nesse
terreno de colisões de direitos fundamentais, os casos de fácil e de
evidente solução são menos comuns do que as respostas arbitrárias e
ligeiras que acabam suscitando.
Para reafirmar a dificuldades
dessas situações, permito-me referir a caso singular, bastante
conhecido, a que me dediquei na minha tese de doutorado, em que uma
senhora alemã, membro convicto de uma comunidade religiosa (Testemunha
de Jeová), por ocasião do nascimento de seu quarto filho, depois de
complicações no parto e de uma anemia profunda, foi aconselhada pelos
médicos a internar-se num hospital para realizar uma transfusão de
sangue. Ela, entretanto, manifestou-se de forma reiterada e peremptória
contra a internação no hospital, sendo que, ao invés do tratamento
médico que lhe era indicado, apenas orou por sua saúde com os irmãos
de sua comunidade religiosa, tornando, então, impossível a transfusão
de sangue. Em virtude disso, a mulher, que se manteve consciente até o
último instante, acabou falecendo[1].
Seu
marido, compartilhando as mesmas convicções religiosas e com a sincera
crença de que a paciente poderia recobrar a saúde se orasse a Deus
pedindo ajuda, negou-se a convencê-la no sentido de realizar a
transfusão, sendo por isso processado e condenado por omissão de socorro
(unterlassene Hilfeleistung), conforme previsão do parágrafo 330, c, do Código Penal alemão (StGB). O caso passou a ser conhecido como Gesundbeter
(aquele que reza pela saúde) e foi submetido ao Tribunal Constitucional
alemão, precisamente, pelo marido da paciente, que interpusera recurso
constitucional (Verfassungsbeschwerde) contra a condenação imposta pela justiça ordinária.
Graças
à sua legítima convicção religiosa (concordemos ou não), que lhes
autorizava a se manifestar e a se conduzir de acordo com sua fé, marido e
mulher, como testemunha de Jeová, estavam convencidos da ideia de que
até mesmo uma doença congênita poderia ser mais adequadamente curada
pelo poder da oração. Além disso, com o preço da própria vida e com o
sofrimento de seus filhos, acatavam literalmente as prescrições
bíblicas, do Velho Testamento, que expressamente proibiam os fiéis de
comerem ou receberem sangue humano.
Por conta desses fatos, o 1º
Senado do Tribunal acabou por tomar uma decisão especialmente
significativa no que respeita às limitações ao direito fundamental da
liberdade de crença e o direito à vida[2].
Verificando que ocorrera, no caso, uma colisão entre a liberdade de
religião e outros bens constitucionais (vida, saúde, etc.), o Tribunal,
buscando encontrar uma solução constitucionalmente adequada, acabou por
proceder a uma ponderação de bens em muitos pontos modelar[3]. Entendamos melhor os fatos.
O
Tribunal Constitucional julgou que a decisão da justiça ordinária, que
condenara o recorrente, interferira de forma inadmissível na liberdade
de consciência e de crença religiosa que é conferida aos cidadãos
alemães (artigo 4, 1, de sua Lei Fundamental)[4]. Para chegar a essa conclusão, o Tribunal partira do pressuposto de que a
liberdade de crença não é apenas garantida a membros de igrejas ou
comunidades religiosas tradicionais, mas também àqueles que aderem a
outras associações religiosas menos conhecidas. Em consequência disso e do mandamento da neutralidade religiosa e ideológica do Estado, deixou expresso que a
força do número de uma determinada comunidade ou sua relevância social
não deve ter influência sobre as decisões dos poderes públicos. Portanto, num Estado que prestigia seriamente a dignidade da pessoa humana e a autodeterminação dos indivíduos como valores que vinculam toda comunidade nacional, deve-se assegurar ao indivíduo, através da liberdade de crença, um
espaço jurídico livre da intervenção estatal, no qual ele possa
desenvolver a forma de vida que bem atenda às suas convicções religiosas[5].
Como
consequência lógica dos pressupostos que assentara, o Tribunal
concluiu, então, que a liberdade de crença é mais do que a simples tolerância religiosa,
isto é, mais do que apenas suportar as convicções religiosas ou
não-religiosas de outros membros de uma comunidade, ou apenas a
liberdade (interior) de acreditar ou não acreditar. Mais do que isso,
ela compreenderia também a liberdade (exterior) de manifestar, confessar
e divulgar as suas convicções religiosas. Nela também se garante o
direito dos cidadãos de orientar todas as suas condutas em obediência
aos ensinamentos de sua crença e de agir em conformidade com suas
convicções[6].
O Tribunal afirmou ainda que não são
apenas as convicções que se baseiam em disposições imperativas de uma
determinada crença que são protegidas pela liberdade de crença,
pois ela também protege convicções religiosas que não signifiquem
obrigatoriamente, numa concreta situação de vida, uma exclusiva reação
segundo modelos previamente dispostos em enunciados imperativos de
convicção religiosa, assegurando, pois, aos indivíduos a possibilidade
de uma reação segundo os melhores e mais adequados meios para
superar uma determinada situação concreta de vida, tudo conforme a
posição de sua crença[7].
O Tribunal Constitucional, entretanto, ainda que estabelecesse, na decisão proferida no caso Gesundbeter,
o âmbito da liberdade de religião nos termos mais amplos possíveis,
acrescentou, contudo, que essa liberdade não é garantida sem qualquer
limite (aliás, nenhum direito fundamental o é).
De fato, conquanto
a liberdade de crença religiosa seja, segundo a interpretação do
Tribunal Constitucional, um direito que não se submete a uma reserva de
lei restritiva[8],
ainda assim, também esse direito fundamental, como os demais direitos
fundamentais garantidos sem reservas de limites legais, submete-se aos
limites imanentes à sua própria inserção no sistema de direitos
fundamentais instituído pela Constituição.
Assim, um conflito a
ser considerado no quadro da liberdade de crença deverá ser resolvido
segundo critérios da ordem de bens e valores fundamentais dispostos na
Constituição e sob a consideração da unidade dessa ordem fundamental.
Como parte do sistema de bens e valores fundamentais, é a liberdade
religiosa submetida ao dever de tolerância, especialmente relacionada ao
princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no artigo 1, 1 da Lei
Fundamental alemã, que orienta, consoante o entendimento do Tribunal
Constitucional, como valor maior, toda a ordem constitucional alemã[9].
Segundo
o Tribunal, os fundamentos acima expostos excluem que ações ou formas
de conduta, que decorram de uma determinada crença, possam ser
submetidas, sem mais, a sanções que o Estado estabeleça para tais
condutas. A força de difusão da liberdade religiosa, disposta no artigo
4, 1 da Lei Fundamental alemã, tem aqui a eficácia de poder influir no
tipo e na medida de sanções que possam ser constitucionalmente
admissíveis como uma imposição estatal[10].
Portanto,
voltando ao caso concreto, segundo o Tribunal, o indivíduo que, numa
situação concreta, permite-se determinar por uma ação ou omissão segundo
sua convicção religiosa, pode entrar em conflito com as visões morais
predominantes e as normas jurídicas vigentes na sociedade. Se ele, assim
agindo, segundo a interpretação predominante, realiza uma conduta
penalmente tipificada, então, por força da liberdade religiosa (artigo
4, 1 da LF alemã), deve questionar-se o aplicador da norma se, sob as
circunstâncias específicas do caso, uma punição, no sentido
jurídico-penal, pode mesmo lhe ser imposta[11].
Por
isso, segundo o Tribunal — como se vê, depois de uma autêntica
ponderação de bens —, nessa conformação específica do caso, não importa
em que medida, a sanção penal como instrumento de proteção de outros
bens jurídicos, sob nenhum aspecto (retribuição, prevenção,
ressocialização do agente) afigurar-se-ia uma sanção adequada, uma vez
que o dever resultante da liberdade religiosa, de que todos os poderes
públicos tomem a sério as fronteiras bastante amplas da liberdade de
convicção religiosa, tem como corolário a recusa do direito penal em
todos os casos nos quais um conflito concreto entre uma obrigação
jurídica resultante da compreensão geral e um dever de crença pessoal
coloque o indivíduo — considerado à luz da norma penal um criminoso —
numa aflição íntima e, mais especificamente, sob uma ameaça que se deva
considerar como reação social excessiva e por isso mesmo violadora de
sua dignidade humana[12].
Aplicando
o conjunto de sua argumentação ao caso aqui analisado, o Tribunal
chegou à conclusão de que os tribunais inferiores ao confirmar a
aplicação do parágrafo 330 do Código Penal alemão ao recorrente, por
suposta prática de omissão de socorro, teriam desconsiderado a eficácia
irradiadora que a liberdade religiosa (artigo 4, 1 da LF alemã), no
presente caso, deveria ter sobre a interpretação e aplicação do referido
dispositivo legal. O recorrente, portanto, não poderia ser censurado
por ter se omitido de tentar, contra sua própria convicção religiosa,
convencer sua esposa a renunciar suas próprias convicções — que, aliás,
estavam totalmente de acordo com as dele, recorrente. Ele compartilhava
com ela a convicção de que a oração a Deus (das Gebet zu Gott)
seria o melhor caminho para a sua cura, pelo que o Tribunal interpretou
que sua conduta e a de sua mulher eram uma profissão de fé própria de
sua crença comum. À luz de todas essas considerações, assentou ainda o
Tribunal que o recorrente não teria a obrigação de colocar a sua decisão
no lugar da adotada por sua mulher. Isso apenas seria de se considerar,
afirma o Tribunal, num manejo de ideias muito próprio aos juízos de
ponderação de bens (que se realizam sempre apoiados nas específicas
circunstâncias de fato e de direito do caso), se, numa eventual
configuração diversa dos fatos, a esposa do recorrente não mais pudesse
conscientemente decidir por si mesma, mas, como se viu, ela manteve-se
consciente até o último instante[13].
Assim,
como se viu, mesmo afirmando, nesse caso extraordinário, a
possibilidade de uma prevalência da liberdade religiosa sobre o direito à
vida, o Tribunal apenas o fez em consideração a condições e
circunstâncias absolutamente extraordinárias, deixando claro que, em
outras circunstâncias, como seria o envolvimento de incapazes, ou de
pessoas que, por qualquer razão não pudessem, em contemporaneidade aos
fatos, manifestar sua vontade, o direito à vida haveria de prevalecer.
Em
síntese, diante de condições tão específicas do caso concreto, ainda
que afirmando a liberdade religiosa, o Tribunal, quando o fez, tomou a
sério, na maior medida possível, a importância do direito à vida.
Comentários
Postar um comentário