Todo
poder emana do povo e em seu nome será exercido. Essa fórmula sintetiza
o princípio da soberania popular. Na Constituição de 1988, ela aparece
no parágrafo único do artigo 1o, com uma redação peculiar: o
poder nasce do povo, mas poderá ser exercido “por meio de representantes
eleitos ou diretamente”, conforme as previsões constitucionais. O
“recurso ao povo”, como fundamento último da soberania, tem seu marco
histórico na subversão do Antigo Regime, mais propriamente com o
surgimento da teoria do sistema representativo, que “só se completa com a
obra dos constituintes franceses de 1791, que, ao declararem
representativa a Constituição francesa, inscreveram na carta
revolucionária o corpo legislativo e o rei como representantes da
soberania nacional. É o que se lê no número 2 do título III sôbre
‘Podêres Públicos’ da referida Constituição”.[1]
Por influência de Hans Kelsen, o artigo 1o
da Constituição da República da Áustria contém a solene afirmação de
que “a Áustria é uma república democrática. Seu direito emana do povo”
(“Österreich ist eine demokratische Republik. Ihr Recht geht vom Volk aus”). Esse famoso artigo, de que tanto se orgulhava Kelsen, é continente do princípio democrático (“demokratische Prinzip”),
cuja concretização se dá pelo reconhecimento do sufrágio universal; da
existência de órgãos legislativos eleitos; da realização de consultas
diretas ao povo, sob a forma de plebiscitos e referendos, e, finalmente,
do direito de formação de partidos políticos.
O povo também foi
invocado pelos antigos romanos para legitimar o poder. A República era
simbolizada por quatro letras: SPQR. Os pretores e, mesmo nos tempos
imperiais, as legiões levavam consigo tabuletas com esse acrônimo, que
significa “o Senado e o Povo de Roma” (Senatus Populusque Romanus). Cada ato administrativo, decisão judicial ou ação militar realizavam-se em nome do Senado e do povo de Roma.
No
constitucionalismo liberal do século XIX, algumas monarquias buscaram a
conciliação entre a fundamentação teocrática e a popular. Fórmulas
híbridas, que invocavam a vontade divina e a vontade geral (ou, de modo
mais moderno, a vontade popular), passaram a ser utilizadas. O caso
brasileiro é especialmente representativo da maneira como os pais
fundadores da nação conceberam a monarquia como o símbolo visível (e
indispensável) à continuidade do imenso império deixado por Portugal no
subcontinente americano. As leis imperiais, e o Código Comercial de 1850
que é uma bela reminiscência desse tempo, possuíam, em seu preâmbulo, a
seguinte frase: “D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Aclamação dos
Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos
saber a todos os Nossos súditos que a Assembléia Geral Decretou e Nós
Queremos a Lei seguinte”. Deus e o povo eram a fonte do poder.
Na
Itália, as decisões de sua Corte Constitucional iniciam-se com a
expressão “em nome do povo italiano”, da mesma forma que, na monarquia,
as decisões eram dadas “em nome do rei da Itália”. Na Alemanha, o
Tribunal Constitucional abre os acórdãos das reclamações com a fórmula
“em nome do povo”.
Se não há mais dúvidas quanto ao caráter
axiomático da democracia e do Estado de Direito, é igualmente
desnecessário justificar que o poder (ou, como pretendia Kelsen, o
direito) emana do povo. Assim está muito bom. Mas, esse esquema parece
esgotado quando se observa que o Poder Judiciário ou, de modo mais
específico, as cortes constitucionais abandonaram o papel de legislador
negativo e avançaram pelas veredas incertas e perigosas da mutação
constitucional, das sentenças aditivas e de um verdadeiro
compartilhamento das responsabilidades da gestão estatal e da elaboração
das normas.
Não se pretende aqui enfrentar problemas como o
ativismo, a judicialização ou o fim da tripartição dos poderes. O
enfoque é diferente, conquanto haja alguns pontos de contato com esses
intrigantes temas de nossa época. A correlação entre o fundamento
democrático do poder e a atuação judicial permite que se examinem alguns
tópicos de grande interesse:
1. Os antigos monarcas absolutos não admitiam a interposição de uma folha de papel (rectius,
a Constituição) entre suas consciências e a vontade de Deus. Somente ao
Todo-Poderoso eles deveriam prestar contas de seus atos. Narra a
História que o último czar da Rússia, Nicolau II, pouco antes de
estourar a Revolução de Outubro (de 1917), recebeu o embaixador
britânico, que estava alarmado com os rumores de uma (posteriormente
confirmada) sublevação contra a monarquia. O diplomata aconselhou
Nicolau II a “recuperar a confiança que o povo parecia haver perdido em
sua pessoa”. Em resposta, o czar afirmou que ele é quem esperava
recuperar a confiança em seu povo. Sua miopia política chocou o
embaixador, que, em um telegrama a Londres, revelou sua desesperança com
a salvação do regime. Nicolau seria fuzilado, juntamente com sua
família, meses depois por ordem dos revolucionários comunistas.
Ao
saírem da zona de conforto de meros agentes “cassadores de normas
inconstitucionais”, conforme o célebre debate entre Kelsen e Schmitt, os
juízes (constitucionais) colocaram-se no centro do dilema sobre o
fundamento de “seus” poderes.[2]
Em relação ao presidente da República ou ao Congresso, a resposta é
notória: eleições livres, diretas e periódicas legitimam a investidura
desses agentes. Para Jean-Jacques Rousseau, dever-se-ia aditar ainda a
legitimidade de exercício e a fidelidade estrita dos parlamentares às
ordens do povo. Eles não teriam vontade, mas seriam meros “procuradores”
(no sentido próprio do Direito Civil, de mandatários) do povo. Não é
sem razão que, na Constituinte de 1823, os deputados eram chamados de
“procuradores” à Assembleia.
Mas, e o juiz? A Constituição de 1988
prevê a investidura por concurso público. O quinto constitucional e a
indicação livre pelo presidente da República, no caso de alguns
tribunais, são exceções que não rompem, ao menos de maneira a
arruiná-lo, com o princípio do concurso público. É possível falar em
“legitimidade” do poder dos juízes?
Nos Estados Unidos, esse
problema não se coloca ante a prevalência da eletividade dos cargos
jurisdicionais, com exceções que também não invalidam a regra.
Recentemente, o Estado Plurinacional da Bolívia, em sua nova
Constituição, adotou a escolha dos magistrados por critérios
democráticos.[3]
O Brasil, que segue a tradição do modelo administrativo francês, a
despeito da contaminação ocorrida nos anos 1990, com a entrada de
elementos anglo-saxônicos (vide as agências reguladoras), o concurso
público é o padrão e, ao menos pelos próximos anos, causa repugnância a
substituição desse modo de investidura. No caso brasileiro, alguns
princípios do regime monárquico permanecem: existe a vitaliciedade; o
critério da promoção por antiguidade (paradoxalmente muito elogiado,
pois impediria o subjetivismo na ascensão do magistrado) e a eleição sem
caráter universal para os órgãos diretivos dos tribunais.
Considerada
a realidade do modelo constitucional de 1988, é possível identificar
alguns fundamentos para a legitimidade do Poder Judiciário:
1.1. A
legitimidade do Poder Judiciário decorre da Constituição, logo, ele é
tão legítimo quanto os demais poderes do Estado. Essa é uma tese muito
cara a alguns constitucionalistas, especialmente aqueles vinculados ao
conceito de “patriotismo constitucional” (Verfassungspatriotismus).
1.2.
A legitimidade do Poder Judiciário existe e limita-se ao cumprimento da
lei. Ele será tão legítimo quanto se revelar um cumpridor e fiel
executor da vontade popular contida na lei.[4]
Nesse aspecto, há uma forte ligação dessa tese com a ideia de um poder
cassatório, controlador e limitador dos outros poderes. Embora ainda
tecnicamente sólida essa explicação, ela se mostra incompleta quando
posta diante de problemas constitucionais contemporâneos advindos da
crise do Parlamento como função estatal.
1.3. A legitimidade do Poder Judiciário não se radica na vontade popular, ao menos diretamente. Dito de outro modo, há um déficit de legitimidade democrática congênito no Judiciário. Sem eleições periódicas, sem recall,
os juízes (vitalícios) são agentes do Estado, integrantes da burocracia
estatal, e não se devem atrever a afrontar as prerrogativas dos poderes
democraticamente eleitos, salvo quando autorizados pela Constituição.[5] Embora ideologicamente antípodas, as posições 1.2 e 1.3 unem-se quanto a seus resultados.
Há,
evidentemente, outras teorias (ou meras explicações) para o problema
colocado no tópico 1 na dogmática constitucional. Considerados os
limites desta coluna, convém uma tomada de posição, o que se dará no
tópico 2.
2. A fundamentação democrática do Direito, uma espécie
do gênero fundamentação contratualista, exige que a soberania descanse
na vontade popular. Evidentemente que há fórmulas de compromisso, como
nas monarquias constitucionais contemporâneas, sendo a britânica o
exemplo perfeito, nas quais coexistem elementos aristocráticos com
outros preponderantemente democráticos. Essa circunstância não embota a
natureza popular do poder (ou, como cunhou Kelsen no texto austríaco, do
direito), ainda que persistam assembleias não eleitas (como a Câmara
dos Lordes) e líderes hereditários (como os soberanos). Razões
históricas, culturais e políticas são menos importantes que as
pragmáticas: esse modelo funciona e não se tem cogitado de sua extinção
nos países que o adotam. A monarquia britânica representou, como nenhum
outro regime no mundo, os valores democráticos contra o governo eleito
(também democraticamente) de Adolf Hitler na II Guerra Mundial.
Se
a legitimidade democrática pressupõe a vontade popular na escolha dos
dirigentes executivos e dos parlamentares, se não há o sufrágio para
respaldar a eleição dos juízes, não parece adequado confundir
“legitimidade democrática” com a “legitimidade constitucional” da
magistratura. É claro que essa é uma afirmação bastante polêmica e
muitas objeções podem-lhe ser lançadas. Mas, essa distinção possui
diversas vantagens:
2.1. O juiz é um servo da Constituição, que,
por sua vez, expressa a vontade popular. Se a legitimidade da
investidura eletiva é-lhe negada, ao menos ele terá a seu favor o
reconhecimento de que sua instituição — a magistratura — existe “em nome
do povo”.
2.2. O magistrado não pode ser um “juiz do povo”. Se o
deputado presta conta de seus atos políticos a seus eleitores, o titular
da jurisdição é dispensado de fazê-lo. Constituir-se-á o juiz em um
“déspota togado”? Jamais. Ele “prestará contas por seus atos” nas
esferas criminal, correicional e administrativa. O Conselho Nacional de
Justiça é uma prova da efetividade desse controle. Mas, ele não deve ser
um comissário, um delegado, um procurador ou um mandatário do povo.
Muito menos de quem se afirma como porta-voz ou divulgador da opinião
pública. Decidirá o juiz “conforme sua consciência”? Esse também é outro
equívoco, outra manifestação da “praga do solipsismo”, denunciada por
Lenio Luiz Streck.[6]
Essa
figura — o “juiz do povo” — não é recente. Sobre ele já escreveu Carlos
Maximiliano, ao dedicar um parágrafo ao “bom juiz Magnaud”, responsável
por medidas que se tornaram muito populares a seu tempo: “Tomava
atitudes de tribuno; usava de linguagem de orador ou panfletário;
empregava apenas argumentos humanos sociais, e concluía do alto, dando
razão a este ou àquele sem se preocupar com os textos. Era um vidente,
um apóstolo, evangelizador temerário, deslocado no pretório. Achou
depois o seu lugar — a Câmara dos Deputados; teve a natural corte de
admiradores incondicionais — os teóricos da anarquia. Os socialistas não
iam tão longe; seguiam-no a distância, com as necessárias reservas
expressas”.[7]
Os
favores do povo, ou, da opinião pública, são voláteis e caprichosos. Os
políticos bem o sabem. Winston Churchill, para quem não existia opinião
pública e sim opinião publicada, conheceu os píncaros da glória com a
derrota alemã em 1945 e, poucas semanas depois, foi devolvido à planície
dos comuns, vencido nas urnas pelo Partido Trabalhista. A ingratidão
popular é a outra face de seu aplauso.
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