A
expansão das atividades do Judiciário nos últimos anos, impulsionada
por diversos fatores, elevou sobremaneira o número de ações ajuizadas. O
acréscimo do número de demandas também acarretou a criação de mais
órgãos jurisdicionais e cargos de juízes e servidores. A equação
orçamentária dos tribunais não pode desprezar o fator da sobrecarga em
ter mais juízes, servidores, estruturas e por certo ferir o equilíbrio
econômico financeiro da gestão, sem falar na responsabilidade fiscal
prevista na legislação. A administração da Justiça que se coadune com
tempos democráticos e contemporâneos precisa ousar, a partir de
princípios inovadores e criativos, para implantar novas formas de
administração e reinventar as velhas sob novas roupagens, sempre
pautados pela interação com todos os agentes do sistema judicial, sem
descurar da ampliação da participação social.
Na tese de doutorado que defendi na Universidade de Coimbra (A interação entre Tribunais e Democracia por meio do acesso aos direitos e à justiça),
após uma análise aprofundada dos tribunais e democracia, especialmente
na América Latina, e dos meios e formas de acesso aos direitos e à
Justiça, bem como da análise de experiências empíricas dos juizados
especiais federais brasileiros, apontei pistas que podem ser utilizadas
para alterar os padrões de litigação nos juizados especiais federais
brasileiros. De certa forma, ressalvadas algumas particularidades da
especialização de cada órgão jurisdicional, as palavras aqui ditas se
aplicam a todas as esferas do Judiciário.
De acordo com o estudo,
na Justiça Federal os resultados das ações dos juizados especiais
federais modificaram a procura e o desempenho dos tribunais e
contribuíram para o aumento dessa procura, a diminuição do desempenho e a
sobrecarga de processos e trabalho. Atualmente, o número de demandas
propostas nos juizados especiais federais é superior aos números totais
das demais demandas ajuizadas nas demais unidades jurisdicionais da
Justiça Federal, incluídas as ações penais e os executivos fiscais. O
quantitativo numérico expressa uma mudança no padrão de litigação na
Justiça Federal brasileira. Nos juizados especiais analisados, as
expectativas sociais e o patamar de exigências dos cidadãos aumentaram,
assim como a procura pelos órgãos jurisdicionais. De outro lado, os
resultados decaíram, principalmente, em grau recursal, e não são os
mesmos do início.
Questiona-se o número elevado de processos.
Haveria excessos? Não seria o caso de limitar, restringir ou diminuir o
número de demandas (inconsistentes) diante de um número exacerbado de
processos? Com o tempo e a estrutura de trabalho poupados não seriam
melhor atendidas as demais demandas?
As respostas a essas
indagações são retiradas da análise da investigação e revelam aparente,
apenas aparente, paradoxo: limitar o número de demandas para ampliar o
acesso aos direitos e à Justiça.
A primeira constatação é a de que
os tribunais e os outros órgãos do sistema de justiça brasileiro,
inclusive os juizados especiais federais, absorvem demandas que não são
propriamente de sua alçada, mas pela sistemática atual são solucionadas
pelos juizados.
O motivo principal é a substituição da atividade
administrativa pela judicial, devido a dois fatores: a) a diversidade de
critérios de interpretação da legislação utilizados nas vias
administrativas e judiciais (mais benéfico nos tribunais); b) após a
análise do pedido, na via administrativa, nos casos de indeferimento, as
pessoas procuram os juizados como uma segunda oportunidade de ter
deferido seu pedido (praticamente não há ônus nem restrições para
ajuizar uma demanda nos juizados especiais).
Em segundo lugar,
reduzir o número de demandas (com ênfase nos processos inconsistentes ou
desnecessários) dos tribunais também faz parte da solução do problema
da sobrecarga. Decidir entre o ajuizamento ou não de uma demanda
judicial significa, em última análise, sopesar prós e contras e ponderar
riscos e probabilidades, custos e benefícios, em face dos possíveis
resultados finais (o desconhecimento e a desinformação, além de
impedirem o ajuizamento de demandas, também contribuem para o
ajuizamento de ações infundadas). Se não há riscos nem contrariedades
(ou eles são mínimos), como no caso dos juizados especiais, resta
evidente que a alternativa do ajuizamento sempre será escolhida e a
análise prévia das adversidades não é sopesada devido à ausência ou o
baixo custo da litigação. A consequência é a sobrecarga de processos nos
juizados especiais federais e as demandas infundadas (improcedentes)
retiram espaço para o processamento e julgamento das demais demandas. De
outro lado, a ausência ou a deficiência de análise prévia de
viabilidade de ajuizamento por um advogado, defensor público e/ou
servidor do setor de atermação dos juizados, inviabiliza que sejam
acionados os filtros de demandas infundadas, essenciais à administração
da Justiça.
Um terceiro ponto averiguado na investigação, na
esteira da redução do número de demandas, relaciona-se à litigância
produzida ou não evitada pelos órgãos administrativos. A ausência do
cumprimento espontâneo das obrigações estatais, pela via administrativa
(Executivo), principalmente nos casos com decisões já pacificadas,
obriga as partes a acionarem os tribunais. De outro lado, o desrespeito
aos direitos por equívocos e os erros nos serviços prestados por agentes
dos poderes públicos também contribuem para o aumentam do número de
demandas judicializadas.
A excessiva e abusiva utilização da via
judicial nos juizados especiais ainda decorre da racionalidade econômica
das partes envolvidas no conflito. De um lado, os litigantes
frequentes, que auferem vantagens econômicas ao desrespeitar direitos e
deixá-los para eventual acertamento na via judicial, em face dos
obstáculos de ordem extraprocessual (desinformação, desconhecimento,
hipossuficiências, resignação) e processual (morosidade, insuficiência
de defesa técnica, litigação individualizada). Noutro lado, as despesas
suportadas individualmente pelos litigantes são irrisórias ou diminutas,
em face da gratuidade processual e da ausência de ônus financeiro com a
demanda. Assim, qualquer expectativa de ganho (chance de sucesso), por
mínima que seja, faz com que o agente com comportamento racional opte
pela propositura de uma ação judicial. Há ainda uma parcela de demandas
que estão num plano intermediário e o difícil é encontrar parâmetros
precisos do que é ou não abusivo, sem obstruir o acesso aos direitos e à
justiça.
Por fim, a redução do acesso aos tribunais para o
aumento do acesso aos direitos e à Justiça está diretamente relacionada
ao tipo de litigação predominante no sistema processual brasileiro e nos
juizados especiais, ou seja, a litigação individualizada. A preferência
pela litigação individual não se coaduna com os anseios das sociedades
democráticas contemporâneas nem com os sistemas judiciais
emancipatórios. A predominância da litigação individual, por meio do
funcionamento sistêmico, subterrâneo, oculto, não dito ou não pensado,
vai, gradualmente, produzir o silenciamento de formas coletivas de
resolução de conflito. A litigação individual inviabiliza a efetiva
prestação jurisdicional, enquanto que a litigação coletiva, não
valorizada, poderia solucionar um contingente expressivo de demandas
individuais que deixariam de ser ajuizadas. Trata-se, sobretudo, de
racionalização do sistema judicial para que as demandas com o mesmo
substrato casuístico e jurídico tenham decisões judiciais não
diferenciadas, cumpridas indistintamente para todos e não somente para
aqueles privilegiados que recorrem individualmente aos tribunais.
A
atomização das ações em demandas individuais é um óbice no atual
estágio do sistema jurídico brasileiro. Sem avanços concretos na área
legislativa e judiciária, para impulsionar o rompimento de paradigmas
sedimentados desde a formação do processo civil brasileiro, será difícil
o cidadão deixar de recorrer individualmente aos tribunais para
assegurar os seus direitos. Ademais, a interferência negativa da
legislação processual, em diversos aspectos, também é responsável pela
proliferação de demandas infundadas e inconsistentes.
Esses
fatores, somados, acabaram por movimentar indevidamente ou
desnecessariamente os tribunais e os sobrecarregam. Nesses casos, é
preciso limitar o acesso aos tribunais, para ampliar o acesso aos
direitos e à Justiça.
O que fazer para limitar e ampliar? Fomentar
uma nova concepção de acesso aos direitos e à Justiça voltada para a
integração entre os órgãos de poder, com as entidades públicas, privadas
e os movimentos sociais, com o objetivo de diminuir o número de
demandas que não necessitariam ingressar nos tribunais, pois são
melhores solucionados na via administrativa ou por outras formas de
resolução de conflito. Nesse sentido, os juizados especiais federais
demonstraram que é possível alterar os padrões tradicionais de prestação
jurisdicional, contudo, é preciso avançar, principalmente para a
inserção de meios de defesa coletivos dos direitos, e propagar
experiências criativas e inovadoras que transformem os sistemas
judiciais.
Para concluir, as sociedades democráticas
contemporâneas são marcadas por um futuro de possibilidades plurais e
concretas, simultaneamente utópicas e realistas, na esteira da
sociologia das emergências (Santos, 2006: 108). Os juizados especiais
federais cíveis brasileiros abriram possibilidades plurais, concretas,
alternativas e viáveis de um novo formato de prestação jurisdicional,
bastando aos cidadãos, operadores e utilizadores dos juizados especiais
desvendarem as alternativas que cabem no horizonte para tornarem
realidade as utopias e sonhos, sobretudo, para aperfeiçoar e construir
uma nova concepção para o acesso aos direitos e à Justiça e um novo
formato de administração da Justiça.
Comentários
Postar um comentário