Se não estou enganado, todo professor de Direito tem, no mundo atual,
um concorrente poderoso: a diversão e o prazer como condição e dever
pedagógico. Não por culpa sua, os alunos vêm condicionados pela nova
teologia dos novos tempos: o hedonismo. As pessoas aprenderam que têm o
direito (e a obrigação) de ser felizes em tudo o que fazem. No
trânsito, no dentista, na missa ou culto de sua igreja, numa aula de
pilates, ou de Direito Previdenciário, o aluno espera que o seu tempo
seja um tempo de prazer e de diversão. Alunos e mesmo nós, professores,
estamos hoje absolutamente convencidos de que uma boa aula sobre “as condições da ação”, “as causas de inelegibilidade”, sobre os “impedimentos impedientes”, sobre o “erro de tipo e de proibição”, sobre “a hipótese de incidência tributária”, ou sobre “a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade”,
deve ser igualmente divertida e prazerosa. Se isso não é alcançado, o
diagnóstico é um só: faltaram ao professor habilitações pedagógicas.
Já
vi em programa da TV Justiça aula de um professor de direito, ao modo
dos cursinhos pré-vestibulares, com violão, jogral e tudo. Como ironiza
um sábio professor conservador de filosofia, é esse o evangelho dos
novos tempos: todos precisamos estar sempre felizes e gostar do que
fazemos. Também no ensino jurídico, o Admirável Mundo Novo de
Aldous Huxley já não é um vaticínio distante, pois também aqui a
fórmula se encaixa: “E esse - interveio sentenciosamente o Diretor - é o
segredo da felicidade e da virtude: amar o que se é obrigado a fazer. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social a que não podem escapar”.
Tenho
me perguntado sobre o que é ser professor de Direito neste início de
novo milênio. Duvido muito que exista algum professor em qualquer
faculdade de Direito neste imenso Brasil que, tomando a sério seu
ofício, não se faça cotidianamente essa mesma pergunta. Leandro Karnal,
esse intelectual iluminado, alerta-nos de que o problema é mais vasto:
é de toda a área de Humanidades. “Talvez pela concepção de tempo e uma
sensibilidade específica para o social, os professores da área de
Humanas parecem muito angustiados com sua atuação[1]”.
No
quadro geral das dificuldades, obviamente, a ninguém escapam algumas
idiossincrasias históricas, próprias do nosso tempo: dissolução de
valores e, consequentemente, a perda de sentido de nosso “estar no
mundo”, além de uma evidente profusão de informações e de “verdades”
(muitas vezes contraditórias), bem como a consequente impossibilidade
de qualquer certeza como ponto de partida (premissa) ou de chegada para
algum significado minimamente conclusivo sobre o nosso afazer
intelectual. O mundo não poderia ser mais “admirável”.
Nada
obstante, muitos professores de Direito se sentiram tentados a fazer
algo diferente e se detiveram diante do medo de estar negando ao aluno o
que ele, segundo a opinião predominante, de fato precisa e espera,
isto é, a boa e velha aula expositiva, que se restringe ao tradicional
conteúdo programático, apto a aprovar o aluno num concurso, na prova da
Ordem ou no ENADE.
Na verdade, essa hesitação essencial não é um
problema apenas das faculdades de Direito. Mesmo pensando na sua
disciplina, a História, Leandro Karnal descreve um quadro que,
certamente, espelha bem a realidade de todos os professores de Direito
que pensaram em alguma transgressão pedagógica: “a boa vontade da
mudança esbarra tanto nos vícios tradicionais da escola como na
resistência multifacetada de pais, (...) colegas e alunos. O inovador
que espera ser saudado messianicamente acaba, com mais freqüência,
encontrando comentários como: ‘Para de enrolar e começa a dar aula’[2].
Em síntese, “muitas iniciativas são abortadas porque o renovador não
consegue ver ou avaliar o peso extraordinário da tradição. Rompendo
abruptamente com ela, corre o risco de perder contato com o real na
sala (...). Não rompendo com a tradição, o professor angustia-se com o
indescritível rosto de tédio do seu aluno que espelha uma monotonia
crescente a cada ano de magistério[3]”.
Em
1985, chamado a refletir sobre a terrível profecia de George Orwell,
veiculada no seu famoso romance publicado em 1949 (o mundialmente
conhecido 1984), Neil Postman observava ironicamente que, ao manter os olhos em 1984,
quando o ano chegou e a profecia não se concretizou, os americanos
deram-se o direito de gabarem-se pelo fato de que a sua democracia
liberal se mantinha firme: o terror poderia até ter ocorrido
em outros lugares, mas eles, os americanos, achavam que podiam
regozijar-se, pois não teriam “sido visitados por pesadelos orwellianos
(Orwellian nightmares)” [4].
Ao
olhar para o nosso mundo, Neil Postman critica nos americanos o fato de
terem esquecido que “ao lado da visão sombria de Orwell, havia uma
outra - um pouco mais antiga, um pouco menos conhecida, mas igualmente
horripilante: o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley[5]”.
Prossegue, então, o autor num confronto do qual claramente não
teríamos dúvida em declarar a vitória de Huxley (cito): “Contrariamente
à crença comum, mesmo entre as pessoas cultas, Huxley e Orwell não
profetizaram a mesma coisa. Orwell adverte-nos de que seremos superados
por uma opressão imposta de fora. Enquanto na visão de Huxley, não se
precisará de nenhum Big Brother para privar as pessoas de sua
autonomia, maturidade e história, (pois) na sua visão, as pessoas irão
amar a sua opressão e adorar as tecnologias que anulam (undo) a
sua capacidade de pensar. Enquanto Orwell temia aqueles que iriam
proibir os livros, Huxley temia o fato de que não haveria razão para
proibir um livro, pois não existiria quem quisesse ler um (livro).
Orwell temia aqueles que nos privariam de informação. Huxley temia
aqueles que nos dariam tanta (informação) que seríamos reduzidos à
passividade e ao egoismo. Orwell temia que a verdade fosse escondida (concealed) de nós. Huxley temia que a verdade fosse afogada (drowned)
em um mar de irrelevância. Orwell temia que nos transformássemos numa
cultura submissa. Huxley temia que nos tornássemos uma cultura banal,
em que estivéssemos apenas preocupados com diversão, prazer e
trivialidades. (Prossegue) ‘Como Huxley acentuou na edição revisitada
de seu Admirável Mundo Novo, os defensores dos direitos civis e
os intelectuais que estão sempre em alerta para opor-se à tirania
erraram ao não tomar em conta o quase infinito apetite humano para a
diversão’. Huxley acrescentou que as pessoas, no 1984 de Orwell, eram
controladas pela imposição do sofrimento. No Admirável Mundo Novo, elas são controladas pela administração (inflicting)
do prazer. Em resumo, Orwell temia que aquilo que odiamos se
transformasse na causa de nossa ruína. Huxley temia que aquilo que nós
amamos é que nos levaria à destruição[6]”.
Olhando
para o mundo de hoje, é difícil não concordar com a hipótese de
Postman de que o mais provável é que Huxley, e não Orwell, estivesse
correto. Da mesma forma, é difícil não estar assustado com as condições
de possibilidade do ensino jurídico em nosso País. Mas há sempre
esperança.
Roberto Campos dizia que o Brasil, para vencer seus
desafios, precisava “abandonar a chupeta das utopias e trocá-la pela
bigorna da realidade”. Pensando no ensino jurídico brasileiro, não sou
tão duro nem acredito como os gregos que o verdadeiro conhecimento só
se possa alcançar – como Antígona – com o sofrimento. Vejo nos alunos
uma determinação e uma boa vontade permanente em tudo o que fazem. Mas
acredito, honestamente, que nem tudo no ensino jurídico (ou qualquer
ensino) pode ser um exercício de prazer e diversão. Alguma coisa está
reservada ao estudo solitário, na difícil tarefa do aluno de estar só
com o objeto (por exemplo: um texto) de seu aprendizado. Não é à toa
que Max Weber, no seu maravilhoso “a Ciência como Vocação”, ao final,
aproximou o ofício de professor a algum tipo de sacerdócio cuja única
virtude, contudo, era a honestidade ou probidade intelectual. E, por
isso, advertiu que aqueles que esperam que os professores se tornem
“profetas e salvadores”, da mesma forma que a voz que perguntou à
sentinela edomita - quando findará a noite? (da história do exílio recolhida das profecias de Isaías), também terão que esperar por mais de dois mil anos.
[1] Leandro Karnal (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. SP: Contexto, 6 ed., 2012, p. 10.
[2] Leandro Karnal (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. SP: Contexto, 6 ed., 2012, p. 10.
[3] Leandro Karnal (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas, p. 10.
[4] Neil Postman. Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business. Versão Kindle, location 237-245.
[5] Neil Postman. Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business. Versão Kindle, location 237-245.
[6] Neil Postman. Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business. Versão Kindle, location 245-254.
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