De
acordo com a constituição brasileira, cabe ao Supremo Tribunal Federal
julgar criminalmente os congressistas, mas a perda do mandato dos
parlamentares, consequente de uma condenação judicial deve ser decidida,
em votação secreta, pela maioria absoluta dos representantes populares
da casa a qual pertença o deputado ou senador criminoso.
É o que está escrito no artigo 55 da Constituição Federal
que diz que, no caso do inciso VI (parlamentar que sofre condenação
criminal em sentença transitada em julgado) "a perda do mandato eletivo
será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto
secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou
de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada a
ampla defesa".
Argumentam alguns
que o inciso IV, do mesmo artigo constitucional (suspensão de direitos
políticos) não permitiria juízo político do Parlamento, de modo que a
perda do mandato seria inexorável.
Ocorre,
entretanto, que o princípio da especialidade, que informa as regras de
hermenêutica, faz com que a decisão judicial criminal condenatória de
parlamentar se submeta ao inciso VI, e não ao inciso IV, que se refere
várias hipóteses de suspensão de direitos políticos, tais como a
incapacidade civil absoluta, o cancelamento de naturalização, etc (cf.
art. 15 da Constituição Federal).
De resto,
conforme o texto constitucional, que não pode ser transformado em letra
inútil, a condenação criminal não terá efeitos imediatos no caso de
haver um mandato eletivo constituído, posto que este só pode ser extinto
em decisão legislativa.
Assim é que, por
ordem da Justiça, o parlamentar deve ser recolhido à prisão se a isto
chegou a condenação, mas o seu mandato resta intocado até que o
parlamento, por uma de suas casas, julgue a conveniência e a
oportunidade da perda respectiva.
Por mais estranho
que isso possa parecer aos olhos de muitos daqueles que querem saciar
sua sede de justiça (jurídica ou política), é exatamente o que está
escrito na constituição, porquanto a Carta prescreve que na hipótese de
condenação criminal, malgrado o juízo técnico jurídico, cabe um
julgamento político pelos representantes do povo, legitimados pelo voto,
para efeitos da eventual perda do mandato do parlamentar criminoso.
Erra aquele que
considerada esta norma uma proteção exclusiva do mandatário, pois o
dispositivo em apreço serve, antes, aos representados que outorgaram
mandato ao parlamentar que acabou por ser condenado. Este último vai
para a cadeia se assim o determinou a condenação; mas é o parlamento que
decide se o preso continua ou não na sua função representativa.
O sistema tem sua
lógica. Cabe ao parlamento decidir se determinado condenado mantém ou
não a legitimação representativa, malgrado sua pena criminal. Não são
raros, aliás, os casos de condenação criminal que deixam intocada a
legitimação representativa de um eleito, convindo lembrar que a
Constituição não foi escrita apenas para julgar os delinquentes do
mensalão.
No contexto desse
julgamento, contudo, e a despeito da clareza do texto constitucional, o
Supremo Tribunal Federal criou uma crise desnecessária e imprópria:
antes mesmo de comunicar seu veredito à Câmara dos Deputados - e
aguardar a decisão que fosse tomada por este Poder - resolveu impor, ao
Congresso Nacional, uma força que não é sua: decidiu que os
parlamentares condenados por crime perderão seus mandatos com o mero
transito em julgado da sua decisão, o que, no nosso sentir, usurpa uma
competência do Legislativo e arranja uma hipótese de cassação de mandato
eletivo que não está contemplada pelo art. 55 da Constituição Federal.
Mas esta não é a
primeira vez que o Supremo Tribunal Federal relativiza a soberania do
mandato eletivo e as garantias constitucionais de sua proteção e
intangibilidade (restritas aos casos do art. 55 da Constituição
Federal). Há cinco anos atrás, o mesmo Supremo Tribunal Federal
assentou, sem nenhuma previsão legal, e sem intervenção do Parlamento,
que deve perder o mandato o representante popular que se desfilia do
partido pelo qual se elegeu, por suposta e presumida "infidelidade
partidária".
Sem se dar conta
de que aquela decisão sobre a "infidelidade partidária" guardava um
silencioso câncer que destruiria a força de um mandato popular, a
maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal tergiversou com a
clareza do art. 55 da Constituição Federal e admitiu que uma decisão da
Justiça falasse mais alto do que o texto constitucional.
Não se deixa de
anotar, aliás, que dentre os ministros do Supremo que admitiram a
cassação de mandato por desfiliação partidária perfilaram-se até mesmo
alguns daqueles que hoje defenderam, na minoria derrotada, a tese de que
só a Câmara poderia decidir pela perda do mandato por condenação
criminal.
Ao tempo daquela
decisão sobre as desfiliações partidárias, como se sabe, havia uma boa
quantidade de migrações partidárias abusivas e fisiológicas, o que fez
com que ninguém achasse ruim que se aniquilasse essa garantia ao mandato
popular em nome da defesa de uma suposta fidelidade partidária.
Mas foi ali que
se plantou a ideia de que o art. 55 da Constituição Federal não deve ser
levado tão a sério quanto nos ensinaram nas Academias.
Já no cenário das
recentes condenações criminais alguns ministros disseram em minoria,
com toda razão, que o mandato eletivo é intocável pelo Judiciário, que
só pode decretar a sua perda quando o decretar a Justiça Eleitoral.
Ora, mas se o
mandato é assim intangível - com o que concorda o signatário -, como
puderam Suas Excelências admitir, lá nos idos de 2007, que os mesmos
fossem cassados em razão de uma simples migração partidária - que sequer
crime configura - e sem que essa perda de mandato fosse decidida pela
Câmara ou pelo Senado?
O que nos deixa perplexos, a despeito de uma linha ou outra, é a desorientação hermenêutica que impera nos dias de hoje.
Convenha-se: a
Justiça pode e deve julgar crimes e, sobretudo, deve garantir que os
criminosos sejam recolhidos ao cárcere, mas a legitimação representativa
de um mandato, exceção feita às hipóteses do processo eleitoral, só
pode ser desconstituída no singular juízo político que é exclusivo do
parlamento, composto de representantes populares eleitos.
O comportamento
sinuoso da jurisprudência do Supremo, que aparenta assumir as vontades
políticas populares sem a devida legitimação representativa do voto,
está a transformar em errático e inseguro o nosso País.
Uma coisa é
certa, esta crise que se desenha nos dias de hoje talvez não existisse
se não tivéssemos sido complacentes com as regras constitucionais
naqueles momentos passados em que desejamos reparar erros numa só
"canetada". Fizemos uma concessão indevida, e agora colhemos o fruto do
nosso próprio comportamento subversivo.
Assusta ver que a
própria comunidade jurídica não quer pagar os preços cobrados pela
democracia. Hoje o Supremo se sente na obrigação de atender às
expectativas que ele próprio criou e, do outro lado, a Câmara dos
Deputados se vê agora na obrigação de lutar pelas manutenção das suas
prerrogativas. Qualquer que seja a solução, as duas instituições sairão
arranhadas. Tudo isto poderia ser evitado se o STF apenas mandasse
prender os parlamentares que condenou ao cárcere - façanha que já estava
do tamanho adequado às altas competências da nossa Corte Suprema.
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