O
escritor João Ubaldo Ribeiro, imortal da Academia Brasileira de Letras e autor
de obras contemporâneas fundamentais para se entender a alma do povo
brasileiro, escreveu um interessante artigo intitulado “Grave crise
existencial” (clique
aqui para ler), no qual ele põe a nu o problema do fim dos direitos
autorais e a situação dos autores que dependem do copyright para
sobreviver. Convém reproduzir parte desse texto de João Ubaldo Ribeiro:
“(...) outro dia, não lembro mais onde, li que já morremos todos. O
autor morreu, disse o pensador, não existe mais isso. Quer dizer, nem do que
está reproduzido aqui eu posso pretender ser dono.
Um pouco intimidado e compreensivelmente confuso, tento soerguer-me na
tumba e logo o sagrado direito à informação me sepulta de novo. O que escrevo
pode, no sentido mais lato, ser qualificado de informação e, por conseguinte,
se eu cobro pelo que escrevo, estou cerceando gravemente esse direito. Está
certo, posso até concordar para não discutir, mas o direito a comer também é
sagrado e, contudo, se o gerente do supermercado for solicitado a por essa
razão dispensar o pagamento das compras, imagino que fará algumas objeções. Da
mesma forma, o direito à saúde é universal, mas os médicos, dentistas e
terapeutas insistem em ser remunerados por seus serviços”.[1]
Na última coluna (clique
aqui para ler), examinaram-se decisões da Suprema Corte do Canadá, que
alteraram o regime de direitos autorais naquele país, e, em paralelo, a
situação jurídica da indústria fonográfica e do livro em face das novas
tecnologias.
Mais que um desabafo de um escritor consagrado, alguém que vive efetivamente
dos direitos autorais, o texto de João Ubaldo Ribeiro expõe, em tom ora
irônico, ora profético, uma espécie de lugar-comum em torno de autores,
compositores e músicos: seu trabalho deve ser compartilhado, mas não pode ser
remunerado como contraprestação por sua fruição por leitores e ouvintes. Em
certa medida, é a nova pergunta que se faz: para que pagar se eu posso obter
gratuitamente esses bens culturais?
O panorama legislativo e jurisprudencial brasileiro parece refletir a
gravidade do momento histórico no debate sobre direitos autorais.
A Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que altera, atualiza e consolida a
legislação sobre direitos autorais, não tem ainda 15 anos, mas já se encontra,
desde meados da década passada, em processo de discussão no governo federal.
Objetiva-se substituí-la ou reformá-la profundamente, o que implica diferentes
níveis de transformação do modelo atual.
O anteprojeto de “modernização da lei de direito autoral”, a cargo do
Ministério da Cultura, apresenta alguns pontos de relevo para a compreensão do
que poderá mudar nesse setor:[2]
1. Redução de 5% para 3% do percentual mínimo devido ao autor sobre o preço
de venda de sua obra (art. 38).
2. A proteção aos direitos autorais post-mortem, passado o período
de 70 anos (contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao do falecimento do
autor), cessa e é permitida “a utilização ou exploração por terceiros da obra
audiovisual ou da obra coletiva não poderá ser impedida pela eventual proteção
de direitos autorais de partes que sejam divisíveis e que são também objeto de
exploração comercial em separado” (art. 44, parágrafo único).
3. Um confuso novo parágrafo único do artigo 45 da Lei de Direitos Autorais,
nos termos do projeto, assegura “[o] exercício dos direitos reais sobre os
suportes materiais em que se fixam as obras intelectuais pertencentes ao
domínio público não compreende direito exclusivo à sua imagem ou reprodução,
garantindo-se o acesso ao original, mediante as garantias adequadas e sem
prejuízo ao detentor da coisa, para que o Estado possa assegurar à sociedade a
fruição das criações intelectuais”.
4. O artigo 46, que apresenta um rol de hipóteses de excludentes de violação
dos direitos autorais, vem acrescido de novas situações, como: a) a reprodução
integral, por qualquer meio físico, de “obra legitimamente adquirida, desde que
feita em um só exemplar e pelo próprio copista, para seu uso privado e não
comercial”, o que modificará o regime atual, que prevê o direito de reprodução
de “pequenos trechos” (inciso II do art. 46); b) a reprodução de obra adquirida
legitimamente para que se usada em meios portáveis, desde que para uso privado
e não comercial (cópia digital de um livro para uso no computador); c) “a
representação teatral, a recitação ou declamação, a exibição audiovisual e a
execução musical, desde que não tenham intuito de lucro e que o público possa
assistir de forma gratuita, realizadas no recesso familiar ou, nos
estabelecimentos de ensino, quando destinadas exclusivamente aos corpos discente
e docente, pais de alunos e outras pessoas pertencentes à comunidade escolar”;
d) a utilização de retratos ou de outro meio de reprodução da imagem de alguém,
confeccionados sob encomenda, “quando realizada pelo proprietário do objeto
encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou, se morta
ou ausente, de seu cônjuge, seus ascendentes ou descendentes”; e) a reprodução
de palestras, conferências, aulas, mesmo sem autorização; f) “a representação
teatral, a recitação ou declamação, a exibição audiovisual e a execução
musical, desde que não tenham intuito de lucro, que o público possa assistir de
forma gratuita e que ocorram na medida justificada para o fim a se atingir”,
nas hipóteses de utilização para fins didáticos; para a difusão cultural e
multiplicação de público, formação de opinião ou debate, por associações
cineclubistas, assim reconhecidas; para uso em atividades religiosas,
“exclusivamente no decorrer de atividades litúrgicas”; para fins terapêuticos
ou de reabilitação em hospitais, clínicas e presídios.
Um dos itens mais polêmicos dessa pré-exclusão é a possibilidade de se
reproduzir, sem intuito mercantil, “obra literária, fonograma ou obra
audiovisual, cuja última publicação não estiver mais disponível para venda,
pelo responsável por sua exploração econômica, em quantidade suficiente para
atender à demanda de mercado, bem como não tenha uma publicação mais recente
disponível e, tampouco, não exista estoque disponível da obra ou fonograma para
venda”. Em suma, esgotado o livro e não reeditado, na prática, sua cópia se
torna lícita e sem pagamento de direitos autorais.
5. Um novo capítulo é dedicado às “licenças não voluntárias”, que consiste
na autorização ao presidente da República para, após requerimento de
interessado específico, que conceda “licença não voluntária e não exclusiva
para tradução, reprodução, distribuição, edição e exposição de obras
literárias, artísticas ou científicas, desde que a licença atenda
necessariamente aos interesses da ciência, da cultura, da educação ou do
direito fundamental de acesso à informação”. Tal licença justificar-se-ia em
diversas hipóteses, ao estilo de uma interessa situação de recusa ou criação de
obstáculos de modo não razoável, pelo titular do direito autoral, “à
exploração da obra”. Assim também será possível se os autores “exercerem de
forma abusiva os direitos sobre” a obra.
O anteprojeto evidentemente representa uma tomada de posição quanto ao
modelo clássico do regime de direitos autorais. Seu conteúdo é evidentemente
polêmico e tem dividido os setores envolvidos com as atividades de cultura no
país. Independentemente de seus pontos controvertidos, a respeito dos quais
apenas a democrática apreciação social e da comunidade jurídica poderá dizer, é
necessário reconhecer-lhe uma grande deficiência: a ausência de mecanismos
substitutivos do copyright como remuneração do ofício dos autores. Se
a opção é reconhecer a obsolescência do modelo em vigor, seja pelo avanço das
novas tecnologias, seja pela mudança dos padrões de consumo, não se pode
simplesmente ignorar outra pergunta essencial: quem pagará o autor?
É a intenção voltar-se aos tempos do mecenato, como dá exemplo a dedicatória
de um famoso livro renascentista de um servidor público florentino, cuja fama
correu o mundo e até hoje é sinônimo de práticas políticas destituídas de
pruridos éticos? A História não terá demonstrado os riscos que esse modelo
apresenta para sociedades pluralistas, complexas e democráticas como as atuais?
O objetivo é “estatizar” a criação autoral, colocando o Estado como garantidor
da remuneração dos criadores, por meio de subvenções, bolsas e concursos? Os
exemplos da literatura do Leste Europeu no período soviético, com exceção dos
autores não-conformistas, são pouco edificantes. Até o presente momento, essa
pergunta perturbadora não foi respondida. E, como se viu na última coluna, esse
é um questionamento formulado em outras nações, que não apenas o Brasil.
Outro ponto que se não pode esquecer é a necessidade de consulta aos cânones
jurisprudenciais firmados no Brasil sobre os direitos de autor. Há antigas e
recentes decisões nesse campo, que não devem cair no oblívio, ao exemplo das
seguintes: a) “a cobrança de direitos autorais pela retransmissão radiofônica
de músicas, em estabelecimentos hoteleiros, deve ser feita conforme a taxa
média de utilização do equipamento, apurada em liquidação”[3];
b) “são devidos direitos autorais pela retransmissão radiofônica de musicas em
estabelecimentos comerciais”[4]; c) a reprodução de obra sem o
consentimento do autor implica “violação de direito autoral moral”, e, se for
inviável o recolhimento da obra, porque os exemplares já se encontram sob
“ampla circulação nacional e internacional”, a consequência será “a indenização
por dano ao direito autoral moral, sem prejuízo do recebimento de ‘royalties’
pelos exemplares já vendidos, em valor a ser apurado em liquidação por
arbitramento”[5]; d) “o Ecad detém legitimidade para fixar
critérios relativos ao montante devido a título de direitos autorais, consoante
entendimento consolidado por esta Corte (Leis nºs 5.988/73 e 9.610/98)”[6];
e) “a utilização de obras musicais em espetáculos carnavalescos gratuitos
promovidos pela municipalidade enseja a cobrança de direitos autorais à luz da
novel Lei n. 9.610/98, que não mais está condicionada à auferição de lucro
direto ou indireto pelo ente promotor”[7]; f) “é objetiva
a responsabilidade do agente que reproduz obra de arte sem a prévia e expressa
autorização do seu autor”, desse modo, “reconhecida a responsabilidade do
contrafator, aquele que adquiriu a obra fraudulenta e obteve alguma vantagem
com ela, material ou imaterial, também responde pelo violação do direito do
autor, sem espaço para discussão acerca da sua culpa pelo evento danoso”.[8]
Não se pode fazer tábua rasa desse acervo de prejulgados. O Direito
Comparado é outro ponto de grande relevo para qualquer reforma da legislação de
direitos autorais. Veja-se, por exemplo, o problema da chamada cópia de livros.
A Lei sobre Direitos Autorais e Conexos da Alemanha (Gesetz über
Urheberrecht und verwandte Schutzrechte, mais conhecida pela sigla UrhG),
em seu parágrafo 53, que trata de reproduções para uso privado e pessoal, em
seu apartado I, permite que uma pessoa natural faça algumas reproduções,
independentemente do suporte utilizado, de uma obra, com as seguintes
condicionantes: a) uso privado da cópia; b), a reprodução não pode servir, de
modo direto ou indireto, a fins lucrativos; c) o original não pode ter origem
ilícita. Não se pode reproduzir a quase totalidade de um livro, exceto em caso
de exemplar esgotado há pelo menos dois anos.
Em quase todas as legislações europeias, criaram-se mecanismos de
remuneração indireta dos autores, na hipótese de cópias para uso privado, que
ora recaem sobre bibliotecas públicas, ora sobre fabricantes de equipamentos de
reprodução. O essencial é que o legislador se haja preocupado com a pergunta
formulada nesta coluna: quem pagará o autor por sua criação? São
exemplos disso os parágrafos 54 e seguintes da UrhG; os artigos L. 311-1 e
seguintes do Código de Propriedade Intelectual de França; o Copyright Act do
Reino Unido, com a figura do fair dealing.
A lógica da remuneração dos direitos autorais não se choca com visões mais
generosas em torno do compartilhamento do saber no mundo contemporâneo. É
preciso avançar, mas em ambos os campos.
[1] RIBEIRO, João Ubaldo. Grave crise existencial. O
Estado de São Paulo. 11.11.2012. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,grave-crise--existencial-,958745,0.htm.
Acesso em 20.11.2012.
[2] Disponível em http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/consulta/.
Acesso em 20.11.2012.
[3] Súmula STJ 261.
[4] Súmula STJ 63.
[5] STJ. REsp 1098626/RJ, Rel. Ministro Sidnei
Beneti, Terceira Turma, julgado em 13/12/2011, DJe 29/02/2012)
[6] STJ. AgRg nos EDcl no Ag 599.001/RJ, Rel.
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 09/08/2011, DJe
15/08/2011.
[7] STJ. REsp 524.873/ES, Rel. Ministro Aldir
Passarinho Junior, Segunda Seção, julgado em 22/10/2003, DJ 17/11/2003, p. 199;
STJ. AgRg no Ag 1363434/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma,
julgado em 28/06/2011, DJe 01/07/2011.
[8] STJ. REsp 1123456/RS, Rel. Ministro Massami
Uyeda, Terceira Turma, julgado em 19/10/2010, DJe 03/12/2010.
Otavio
Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de
Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant
des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación
Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
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