Juizados Especiais Celeridade não pode desrespeitar direitos fundamentais, por Vallisney de Souza Oliveira
A
Constituição de 1988 adotou um novo modelo de Justiça, paralelo ao
sistema comum, com a finalidade de resolver controvérsias de menor
complexidade, geralmente de menor valor econômico e de julgar delitos de
pequena potencialidade ofensiva. São os Juizados Especiais cíveis e
criminais dos entes da Federação, que depois se ampliaram e se
aperfeiçoaram com a instalação dos Juizados Federais e dos da Fazenda
Pública dos Estados e Distrito Federal.
No transcorrer do sistema
seletivo e complexo de jurisdição historicamente ofertada à sociedade
brasileira a vertente desse novo modo de distribuição de Justiça trouxe
mecanismos efetivos centrados em três focos principais: maior acesso do
cidadão, celeridade e resolução do conflito pela transação.
Os
juizados utilizam um método simples e prático, estimulam o desapego à
legalidade estrita e se concentram na jurisdição equânime, sem retirada
da independência do julgador ou desrespeito ao modelo constitucional.
Guiam-se pelos princípios específicos da informalidade, oralidade,
simplicidade e celeridade, e pela prevalência da conciliação, preceitos
necessários para que o Estado-juiz possa dar respostas rápidas às
demandas de um extrato populacional antes excluído do serviço da Justiça
e cumprir a missão de restabelecer a ordem jurídica e de atender ao
interesse público.
Para alcançar a celeridade, os juizados contam,
decisivamente, além dos princípios ou critério específicos da Lei
9.099/95 (simplicidade, informalidade, oralidade, economia e
celeridade), com os princípios constitucionais do processo, com as
peculiaridades dessa forma de Justiça diferenciada.
Entre os princípios constitucionais pertinentes ressaltam-se: o do devido processo legal (due process of Law)
e seus corolários — contraditório, ampla defesa e igualdade —
fundamentais para tornarem os Juizados Especiais cada vez democráticos e
mais próximos do cidadão.
O devido processo legal, ao lado do
acesso à Justiça, constitui notável princípio constitucional processual
cuja marca maior é o fato de estender suas arestas para outros preceitos
a ele coligados.
Decorrente da doutrina jurídica norte-americana, que defende o procedural due process of law e susbstantive due process of law, o devido processo legal se ampara nos direitos à vida, à propriedade, à liberdade, nos termos do caput do artigo 5o
da Carta de 1988, e por isso mesmo proíbe o Poder Público de violar
regras legais e privar o cidadão dos bens tutelados pela Constituição e
exige, por esse prisma, a razoabilidade da edição da lei e a atuação
estatal proporcional ao fim almejado, respeitando-se sempre os direitos fundamentais do povo.
Pelo
princípio do devido processo legal, para garantir a decisão apropriada
aos litigantes, compete ao Judiciário utilizar-se de um processo
orientado pela legalidade e pela constitucionalidade para evitar que
alguém seja condenado ou despojado de seus bens, sumariamente, e para
ofertar oportunidade de manifestação e defesa do interessado perante um
órgão julgador independente num procedimento público e eficaz.
A
atuação processual no âmbito dos Juizados Especiais não pode deixar de
observar esse importantíssimo princípio constitucional, inclusive na
conciliação, momento mais notável desse Setor Judiciário. O rito dos
juizados como qualquer iter procedimental tem que observar os
direitos constitucionais das partes e primar pela isenção de julgamento e
garantias efetivas na prática conciliatória. A celeridade pretendida
com os juizados precisa estar de acordo com a preservação dos direitos
fundamentais provenientes do due process of law, especialmente com aqueles previstos no artigo 5º da Constituição.
O
princípio do contraditório, derivado do devido processo, é o direito da
participação da parte para poder preservar seus interesses jurídicos e
não ser prejudicada indevidamente[1].
Por tal princípio se exige que a parte conheça os fatos e fundamentos
processuais sobre ou contra si e se possibilite a refutação contra as
manifestações da parte contrária[2].
Manifesta
expressão do adequado dever-poder do julgador, o contraditório garante a
cada litigante os meios de recebimento da tutela adequada. Toca ao juiz
dos Juizados Especiais, nos provimentos seus, seguir o rito, com
impulso próprio e a presteza desejada, incentivando a atuação das
partes, numa reiterada e profícua dialética, a fim de se dar a tutela
justa e mais afinada com a verdade, com igualdade e com o bem comum
proveniente da correta e acertada jurisdição.
O processo se
assenta em afirmações, ratificações, oitivas, manifestações, intimações,
requerimentos, impugnações, recursos e decisões, além de outros atos
sequenciados dos diversos sujeitos atuantes. O juiz direciona o iter
pelo contraditório, seja escrito, seja em audiência conciliatória ou de
julgamento, evitando surpresas e contratempos, a fim de que sua
sentença não seja decapitada pela Turma Recursal, órgão de reexame das
decisões dos juízes dos juizados.
Os variados princípios aplicados
aos juizados devem ser balanceados e harmonizados. A celeridade
concilia-se na medida do possível com o princípio do contraditório e com
os princípios constitucionais da razoável duração do processo.
Viola
o devido processo legal a manutenção da extinção automática de
processos em seu nascedouro, quando o juiz se nega a apreciar as
justificativas das partes, oral e pessoalmente ou mediante embargos de
declaração e simples petições. Em tais circunstâncias, cabe ao
magistrado se retratar quando a situação recomendar, não fazendo da
decisão nos embargos mera resposta modelo (“não há omissão, contradição
ou obscuridade”) de não provimento ou não conhecimento.
Ao ser
instaurada a causa nos juizados, mesmo sem a oitiva do réu, o juiz pode
reconhecer a improcedência desde logo do pedido, quando já tiver
proferido, em questões exclusivamente de direito, outras sentenças
idênticas no mesmo sentido, conforme autoriza o artigo 285-A, do CPC,
introduzido pela Lei 11.277/2006[3].
Apesar
da inexistência de previsão para oitiva do réu, não há violação ao
contraditório, pois o juiz prolatou uma sentença declaratória negativa
do direito do autor e positiva para o réu, em matéria exclusivamente
jurídica, em que já houve manifestações anteriores (em outras ações
idênticas) pela improcedência do pedido. Ou seja, mesmo sem participar
do processo, o demandado recebe uma tutela judicial favorável, com a
possibilidade de fazer coisa julgada material, não lhe advindo qualquer
prejuízo na extinção de mérito no seu nascedouro.
De igual
maneira, o réu não é prejudicado quando o juiz indefere a inicial do
autor, sem precisar citá-lo. Entretanto, é vedado ao magistrado agir com
surpresa, especialmente em relação ao direito em disputa. Também lhe é
vedado, como regra, atuar nas questões materiais sem dar oportunidade de
defesa e de contraditório, porquanto se a lei impõe a relação entre o
juiz e as partes, o diálogo se converte como fundamental para o devido
processo.
Mesmo que em algumas situações o princípio do
contraditório tenha que ser relativizado ou harmonizado com outros
mandamentos, tal como a celeridade processual, incide amplamente o
princípio do contraditório nos Juizados Especiais.
Estabelecido na
Constituição, pelo princípio da ampla defesa concede-se ao
jurisdicionado o direito de utilizar em juízo de todos os instrumentos
não vedados em lei, como resposta, impugnação, recurso, assistência
técnica, direito a advogado, a defensor público e à produção de prova,
acesso à Justiça e a outros meios idôneos de atuação judicial. Por outro
lado, não se pode em nome da ampla defesa pretender tornar o processo
um círculo vicioso que nunca acaba; é necessário a cada momento ir-se
adiante com a sequência de atos essenciais e prestos a fim de, sem
desviar-se do escopo do processo, efetivar-se a jurisdição.
Nos
Juizados Especiais Criminais, o princípio da ampla defesa tem incidência
lata, uma vez que o réu deve, obrigatoriamente, ser representando em
juízo por defensor e se citado por edital não comparecer, o
processo fica suspenso até ser encontrado (art. 366 do CPP). E a ampla
defesa se estabelece desde o início do processo e ainda na fase
pré-processual, uma vez que a audiência preliminar conciliatória penal
exige que o réu compareça com o seu advogado, sob a pena de lhe ser
nomeado um defensor dativo para possibilitar a composição civil do dano e
a transação (art. 72 da Lei 9.099/95).
Quanto ao processo
civil nos juizados, em nome da ampla defesa, se houver risco da parte
vir a ser prejudicada indevidamente por estar sem advogado, o juiz pode
alertá-la da necessidade de contratar um ou de ser representado pela
Defensoria Pública, o que demonstra a importância da ampla defesa nos
Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com as peculiaridades desse rito
acessível e sumaríssimo.
O princípio da igualdade processual, decorrente também do devido processo legal (caput do art. 5o
da Constituição), também se ampara na regra geral da igualdade perante a
lei, impondo-se ao Estado o dever de não fazer diferenciações
infundadas e irracionais para certas pessoas em prejuízo de outras, uma
vez que ambas, ainda que haja particularidades, possuem direito aos
mesmos direitos e se sujeitam às mesmas vedações.
A isonomia se
volta para o legislador, a quem compete igualar ou desigualar para
nivelar, e não desigualar os iguais, porque neste último caso implica
discriminar. Significa dizer que a norma pode considerar quem se situa
em patamar diferente de outrem, mas não pode criar privilégios ou
restrições a pessoas em estado de receber o mesmo tratamento jurídico. É
necessário haver, em abstrato, a isonomia perante a lei e, no caso
concreto, perante o órgão judicante. O legislador e o julgador podem
realizar a desigualdade aparente como meio para se alcançar uma norma
equânime e uma Justiça igualitária.
Diante do caso concreto
compete ao juiz dar tratamento igualitário às partes e agir de forma que
a desigualdade não seja fator de patentes injustiças. Para estar de
acordo com a igualdade, o juiz tem o dever de assegurar aos litigantes
os meios necessários para que vença aquele que está com a razão e não
quem, valendo-se da superioridade no âmbito material, tenha o agrado da
Justiça e do processo prejudicando o hipossuficiente, este inferiorizado
diante do Estado.
É essencial a existência da igualdade no
conhecimento do conteúdo da lide posta em juízo, sobre os arsenais
jurídicos à disposição das partes e sobre a defesa técnica, para que o
magistrado possa aplicar o direito com conhecimento mais completo da
causa.
A igualdade caminha junto com outras garantias processuais.
Quanto mais o juiz observa esse princípio, mais saberá que a demanda
seguirá célere e efetiva e, o que é muito importante, nos trilhos da
verdade real. Portanto, o órgão julgador precisa fazer valer a isonomia
constitucional e processual para chegar a um processo equânime e a um
julgamento justo.
Por outro lado, a demora do processo causa uma
desigualdade flagrante, porque poderá estar a serviço daquele que sabe
de antemão não ter razão e que por isso não pretende, realmente, o final
do procedimento[4].
A
isonomia visa ao equilíbrio entre os sujeitos, iguais oportunidades e
mesmos direitos. A demora pode acarretar desigualdades, razão por que
uma justiça eficiente deve estar em sintonia com uma Justiça
igualitária, para o bem daquele que não pode esperar muito para a
solução do processo em que está em jogo o seu pretenso direito[5].
Pela
regra da igualdade impõe-se o equilíbrio entre as partes, sem
privilégios, sem discriminações de classes, castas, grupos, pessoas ou
categorias. Os Juizados Especiais Cíveis (Estaduais) cuidam de litígios
entre particulares, havendo de se presumir que ambos estejam na mesma
escala de igualdade. Por isso a Lei não cria prazos diferenciados, nem é
caso de se aplicar as disposições do CPC à matéria, dado que afrontaria
o princípio da celeridade.
Os Juizados Federais e os Juizados da
Fazenda Pública têm num polo microempresas, sociedades civis de
interesse público, empresas de pequeno porte e, principalmente o
cidadão, e noutro o Estado, o Poder Público, portanto vale a regra de
ser necessário impor-se a igualdade real, razão pela qual “não haverá
prazo diferenciado para a prática de qualquer ato processual pelas
pessoas jurídicas de direito público, inclusive a interposição de
recursos, devendo a citação para audiência de conciliação ser efetuada
com antecedência mínima de trinta dias” (art. 9º, Lei 10.259). Do mesmo
modo, os Juizados Fazendários não admitem a remessa oficial nas
sentenças condenatórias da Fazenda Pública.
Além de conter
mecanismos inerentes à ampla defesa, a Lei 9.099/95 contém algumas
regras essenciais para fazer valer o princípio da igualdade, quais
sejam: “Sendo facultativa a assistência, se uma parte comparecer
assistida por advogado, ou se o réu for pessoa jurídica ou firma
individual, terá a outra parte, se quiser, assistência judiciária
prestada por órgão instituído junto ao Juizado Especial, na forma da lei
local” (§ 1º do art. 9º da Lei 9.099/95). Além disso, quando a causa
recomendar, pelo prejuízo verificável pela falta de defesa do autor sem
advogado, ao juiz cabe alertá-lo para que venha com advogado ou se
dirija à Defensoria Pública, suspendendo a audiência ou o processo (§ 2º
do art. 9º da Lei 9.099/95).
Pense-se na situação em que o autor faz um pedido diretamente no setor de atermação
dos juizados e vai à audiência sem advogado. Caso o juiz perceba que a
parte não entende o mínimo dos contornos do seu direito nem do seu
pedido, não sabe (nem o que é) conciliar com a outra parte, é analfabeto
ou possui aparentemente um entendimento incompleto das coisas ou das
questões discutidas, por mais que o juiz imprima uma linguagem clara e
explicativa, essa pessoa corre o risco de perder indevidamente o seu
direito, se o tiver. Nestas hipóteses e em outras similares, cabe ao
juiz suspender a audiência e intimar a Defensoria Pública para que possa
fazer a devida assistência jurídica ou na própria audiência recomendar
ao autor a procurar um advogado, com o objetivo de fazer valer o
princípio da isonomia.
Com regras claras de abolição de
privilégios e de poderes para que o juiz possa dar melhores condições de
defesa processual ao hipossuficiente, o princípio da igualdade, ao
conciliar-se com o princípio do acesso à Justiça, tem aplicação nos
Juizados Especiais contundente e especificamente.
A Lei 9.099, de
1995, que especifica a disposição contida no artigo 98, I, da
Constituição Federal, deu um tratamento peculiar ao tema dos Juizados
Especiais e aos princípios postos na Lei Fundamental, tais como
sumarização do processo, oralidade e efetividade, celeridade, economia,
informalidade e simplicidade.
Com os Juizados Especiais a Justiça
se aproximou da população, tornou-se mais humana, mais social, imediata
na busca da prova, no julgamento por equidade e distribuição de uma
Justiça solidária, além de ser uma via judicial acessível ao
jurisdicionado, com boas condições de colher a prova e ter contato com
as partes, sem contar o fato da pré-existência de demanda reprimida
pelos óbices naturais de uma Justiça formal.
Acima de tudo, os
juizados somente se estabelecem como uma Justiça bastante procurada e
requisitada pela sociedade por força da preservação do princípio
constitucional do due processo of Law e os consectários constitucionais da igualdade, contraditório e ampla defesa.
[1] “É a regra contida na parêmia audiatur altera pars, ninguém pode ser demandado sem ser ouvido” (ROSAS, Roberto. Direito Processual Constitucional: princípios constitucionais do processo civil. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 44).
[2]
“O contraditório, também chamado princípio da bilateralidade da
audiência, consiste no direito de ser ouvido no processo, de
manifestar-se por último” e de ter chance de “reagir e falar nos autos”
(OLIVEIRA, Vallisney de Souza. Processo Civil – para concurso de juiz federal. São Paulo: Edipro, 2011, p. 169).
[3] “O art. 285-A deve ser compreendido na busca de maior racionalidade e celeridade na prestação jurisdicional, eficiência, em última análise, nos casos em que há decisão desfavorável à tese levada nova e repetitivamente para a solução perante o Estado-juiz” (BUENO, Cássio Scarpinela. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, 4ª ed., v. 2. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 160).
[4]
“A morosidade do processo atinge de modo muito mais acentuado os que
têm menos recursos. A demora, tratando-se de litígios envolvendo
patrimônio, certamente pode ser compreendida como um custo, e esse é tanto mais árduo quanto mais dependente o autor é do valor patrimonial buscado em juízo.
Quando o autor não depende economicamente do valor em litígio, ele
obviamente não é afetado como aquele que tem o seu projeto de vida, ou o
seu desenvolvimento empresarial, vinculado à obtenção do bem ou do
capital objeto do processo” (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008 (Curso de Processo Civil, v. 1), p. 188).
[5]
“Portanto, com base no princípio aqui tratado, o cidadão pode exigir
que se cumpram aceleradamente os prazos legais, com vistas a
possibilitar a pronta defesa daquele que sofreu o constrangimento
ilegal. Se o tempo legal e/ou razoável extrapolou, quem está preso deve
ser solto; se existe prescrição penal a ser declarada, que seja
decretada; se existe bem apreendido pela administração ou pelo juiz, que
seja liberado. O que não se admite é o angustiado cidadão vir a sofrer
prejuízos com a demora da atividade judiciária” (OLIVEIRA, Vallisney de
Souza. Direito à razoável duração do processo após a Emenda
Constitucional n. 45/2004. In: Constituição e Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 10-11).
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