É no ensaio O Homem Cordial de Sérgio Buarque de Holanda
(1902-1982), genial historiador, crítico e sociólogo, que podemos
alcançar um conceito de Estado distante de romantização que percebe na
organização estatal um agigantamento da família. O ensaio é parte do
clássico Raízes do Brasil. Foi recentemente republicado na coleção Grandes Ideias,
em edição conjunta da Penguin e da Companhia das Letras, primorosamente
organizada por Lilian Moritz Schwartz e André Botelho. A edição é de
2012, e é a que utilizo no presente ensaio.
Sérgio Buarque de
Holanda nega a tese não-contratualista da origem familial ou patriarcal
do Estado, particularmente defendida por Robert Filmer. Para Sérgio
Buarque de Holanda, “o Estado não é um ampliação do circuito familiar”[2].
Enfrentando concepção tradicional, de que o Estado seria a continuidade
da organização familiar, Sérgio Buarque de Holanda insistiu que “não
existe entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma
descontinuidade e até oposição”[3].
Contesta-se,
assim, leitura simplista nascida da historiografia romântica do século
XIX (refiro-me, entre outros, a Foustel de Coulanges), para a qual
frátrias, tribos e gens seriam agrupamentos que se desdobrariam na
pólis, seu destino natural. A família desaguaria na cidade. Para Sérgio
Buarque de Holanda a indistinção das duas formas, Estado e família, é
“prejuízo romântico que teve os seus adeptos mais entusiastas no século
XIX”[4].
E assim, prossegue Sérgio Buarque de Holanda, “de acordo com esses
doutrinadores, o Estado e suas instituições descendem em linha reta, e
por simples evolução, da família”[5].
Para
Sérgio Buarque de Holanda, quanto às relações entre Estado e família,
“a verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência”[6].
Estado e família coexistem, no entanto, em instâncias distintas, por
complementação, e não por derivação. O Estado não é a simples dimensão
superlativa e quantitativa da família. E a família não é a
miniaturização do Estado, na qual o pai seria o governante, ainda que
não escolhido pelo governado: não se escolhem os pais. O Estado teria
nascido como oposição à ordem doméstica, e não como seu complemento
natural:
“Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo geral do particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo, e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência”[7].
“Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo geral do particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo, e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência”[7].
Sérgio
Buarque de Holanda ilustra o argumento com narrativa de Sófocles, em
Antígona, peça teatral recorrentemente utilizada com o discurso
justificativo do direito natural. Trata-se do dissenso entre a heroína,
Antígona, e o rei, Caronte. Para Sérgio Buarque de Holanda, “Creonte encarna a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família”[8].
Antígona queria sepultar o irmão, com base num direito que
substancializa a imanência da ordem familiar; este se identificaria com
um direito natural que estaria acima de um direito do Estado,
contingente e efêmero. Creonte não autoriza o sepultamento do irmão de
Antígona com fundamento numa ordem transcendente do Estado.
Para
Sérgio Buarque de Holanda “o conflito entre Antígona e Creonte é de
todas as épocas e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias”[9].
A ordem da família e a ordem do Estado não se confundem. Este última
não é a continuidade daquela primeira. Pelo contrário, é a ela oposto;
apenas a imaginação romântica é que presume no Estado o alargamento da
família.
O Estado é conceito de transcendência, e não de
imanência. É uma criação cultural que evidencia a alucinação criadora
dos construtores da ciência política. Uma alucinação absolutamente
construtiva, que sob a imagem da família ampliada acomodou fórmulas de
organização social que se traduzem no governo, nas instituições e no
Direito.
[2] Holanda, Sérgio Buarque, O Homem Cordial, São Paulo: Penguin Classics-Companhia das Letras, 2012, p. 45.
[3] Holanda, Sérgio Buarque, cit., loc. cit.
[4] Holanda, Sérgio Buarque, cit., loc. cit.
[5] Holanda, Sérgio Buarque, cit., loc. cit.
[6] Holanda, Sérgio Buarque, cit., loc. cit.
[7] Holanda, Sérgio Buarque, cit. loc. cit.
[8] Holanda, Sérgio Buarque, cit., pp. 45-46.
[9] Holanda, Sérgio Buarque, cit., p. 46.
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