Direito Comparado: Suprema Corte britânica valida pacto antenupcial, por Otavio Luiz Rodrigues Junior
Na
porta da Suprema Corte do Reino Unido, advogado e cliente aproximam-se
das câmaras e objetivas. Ela está vestida de branco, elegantemente, com
os olhos baixos, embora não consiga esconder sua incontida alegria,
revelada de modo discreto pelos lábios ligeiramente arqueados. Seu nome é
Katrin Radmacher. Alemã, 40 anos de idade, de uma família de prósperos
empresários da indústria de papel, uma das herdeiras mais ricas de seu
país, favorecida com uma antecipação legítima, ela acabara de sair de
uma demorada disputa judicial com seu ex-marido, Nicolas Granatino, um
francês, dois anos mais jovem, que a conheceu em uma boite em Mayfair.[1]
A
alegria de Katrin Radmacher não é sem motivo. A Suprema Corte, em uma
virada jurisprudencial, confirmou a validade de um pacto antenupcial
firmado por ela e seu ex-marido. Katrin não mais será obrigada a dividir
parte considerável de seus bens com Nicolas, ex-empregado do JP Morgan,
que deixara a bem-sucedida carreira como operador do mercado de
investimentos para fazer doutorado em Biotecnologia e se tornar
pesquisador na Universidade de Oxford.
Simon Bruce, o advogado de
Katrin, diante da imprensa, afirma que sua cliente está muito satisfeita
com o julgamento, mas triste pelo processo que se arrastou pelos
últimos 4 anos. A decisão representa uma importante mudança no Direito
inglês. Ainda segundo o advogado, os cônjuges, no pacto, acordaram não
formular pretensões patrimoniais entre eles, em caso de divórcio. O
matrimônio, diz Bruce, deveria ser por amor e não por dinheiro, mas
“infelizmente essa promessa foi quebrada por ele [o marido]”. Os
cônjuges não podem prever “nos melhores momentos” o que ocorrerá nos
“piores momentos” da relação. Os pactos antenupciais representariam uma
espécie de seguro em face de circunstâncias futuras.
As
declarações do advogado Simon Bruce encerram-se. Ela ergue o olhar, o
sorriso esboça-se com mais ousadia. Katrin Radmacher sai de cena,
juntamente com seu advogado, que seria ameaçado de um processo por
difamação, a ser movido por Nicolas Granatino, em razão dessas palavras,
que foram reproduzidas nos principais noticiários de língua inglesa no
outono de 2010.[2]
Retomando o assunto da última Coluna (clique aqui para ler),
quando se expôs o estado-da-arte da jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça e da doutrina nacional sobre a validade dos pactos
antenupciais que regulavam os regimes de separação (convencional) de
bens, importa agora analisar o histórico precedente Radmacher v. Granatino [2010] UKSC 42 e seus reflexos para o Direito Civil Comparado.
Vamos
ao acórdão da Suprema Corte, que teve como relator Lord Phillips,
julgado aos 20 de outubro de 2010, de extensão invulgar para os padrões
correntes. A decisão não foi unânime, pois houve substancioso voto
dissidente de Lady Hale.[3]
1.
Nos termos do relatório de Lord Phillips, as partes Katrin Radmacher,
então com 29 anos, e Nicolas Granatino, à época com 27 anos, assinaram
um pacto antenupcial na Alemanha, em 1o agosto de 1998, e
casaram-se em Londres aos 28 de novembro de 1998. Viveram no Reino
Unido, tiveram duas filhas e, 8 anos depois, separaram-se em outubro de
2006. Katrin requereu o divórcio no mesmo mês, o qual foi decretado em
julho de 2007.
2. O pacto antenupcial, escriturado na Alemanha em
notas de tabelião, continha regras sobre a divisão do acervo patrimonial
em caso de separação, divórcio, anulação do casamento ou morte dos
cônjuges. A separação total dos bens foi convencionada: marido e mulher
administrariam seus ativos de maneira independente. Não haveria pedido
de pensão, indenização ou alimentos. Segundo Lord Phillips, a decisão de
casar sob tal regime foi de iniciativa de Katrin Radmacher: ela
recebera antecipadamente parte da herança e esperava ainda receber mais
bens de sua família. Conforme o voto condutor, “seu pai [de Katrin] insistiu nisso [na celebração do pacto].
Ela mesma estava ansiosa que o marido mostrasse, ao aceitar o pacto,
que ele estava casando com ela por amor e não por seu dinheiro”.
3.
A despeito do acordo, o ex-marido requereu e obteve em juízo o
pagamento de um valor fixo, na ordem de 5 milhões e 560 mil libras
esterlinas, e de quantias variáveis, que lhes permitissem manter o
padrão de vida, adquirir uma casa em Londres e outra na Alemanha, a fim
de que ele permanecesse com as filhas, no exercício do direito de
visitas ou de tê-las junto de si. O juiz de primeiro grau, o Barão J,
entendeu que se deveria desconsiderar o pacto, forte em antigos
precedentes da Câmara dos Lordes.
4. Em seguida, o relator fez um apanhado da evolução legislativa do divórcio no Reino unido, desde o Matrimonial Causes Act de 1857, o Matrimonial Causes Act de 1866, o Divorce Reform Act de 1969 e o atual Matrimonial Causes Act de 1973, profundamente alterado pelo Matrimonial and Family Proceedings Act de 1984 e pelo Family Law Act de 1996.[4] Na seção 25 do Matrimonial Causes Act
de 1973, estão fixados os parâmetros a serem seguidos pelo Poder
Judiciário em caso de divórcio. Devem ser avaliadas questões como: a) os
bens de cada cônjuge, sua participação no patrimônio e sua capacidade
de trabalho; b) as necessidades financeiras, as responsabilidades e os
encargos que a cada um se impõe; c) o padrão de vida usufruído pela
família antes do colapso do matrimônio; d) a idade dos cônjuges e a
duração do casamento; e) a existência de alguma debilidade física ou
deficiência mental nas partes envolvidas; f) a contribuição econômica ou
o cuidado de cada um dos cônjuges para o bem-estar da família; g) a
conduta de marido e mulher e sua apreciação moral pela Corte.
5.
Na jurisprudência da Câmara dos Lordes, que exercia a jurisdição hoje
atribuída à Suprema Corte, encontram-se precedentes fundamentais ao
reconhecimento da partição dos bens entre os cônjuges, após o fim do
casamento. No caso White v. White [2001] 1 AC 596, um casal,
unido há 33 anos, amealhou 4 milhões e seiscentas mil libras esterlinas
e, por ocasião do divórcio, a Câmara dos Lordes entendeu que não se
deveria fazer distinções quanto ao modo pelo qual cada um colaborou no
enriquecimento familiar. Não se pode discriminar quem cuidou dos filhos e
do lar em detrimento de quem trabalhou em atividades negociais.
6. No caso Miller v Miller; McFarlane v McFarlane
[2006] UKHL 24; [2006] 2 AC 618, o relator Lord Nicholls defendeu que o
casamento é uma sociedade e, quando ele termina, os ativos devem ser
objeto de divisão equânime, ao menos que exista uma boa razão em
contrário.
7. Retornando aos elementos descritivos do litígio
entre Katrin e Nicolas, Lord Phillips anota que o acordo, embora tenha
sido celebrado na Alemanha, foi lido e explicado, em inglês, pelo
notário, aos nubentes. E, durante a elaboração do pacto, o marido teve a
oportunidade de buscar auxílio jurídico e não o desejou.
8. Além
disso, segundo Lord Phillips, a mudança profissional de Nicolas, que
chegou a ter rendimentos anuais de 500 mil libras esterlinas, quando
trabalhava para JP Morgan, deu-se por sua exclusiva vontade.
9.
Lord Phillps conclui que os pactos antenupciais têm natureza contratual e
devem ser observados e cumpridos, segundo a lei inglesa. As antigas
objeções à validez desses negócios, fundadas em questão de public policy (ordem pública ou bons costumes, conforme se traduza esse termo para o equivalente nacional), não mais se sustentam.
10.
A razão pela qual a Corte deve fazer prevalecer o acordo é o “respeito
pela autonomia individual”. A Corte deve guardar respeito pela “decisão
de um casal sobre a maneira como cada um de seus assuntos financeiros
devem ser regulados”. O Judiciário não se pode substituir à vontade das
partes, pois assim agiria de maneira “paternalista” e sob o duvidoso
argumento de que “saberia melhor” do que os cônjuges sobre seus próprios
interesses. E isso é “particularmente verdadeiro quando o pacto
compreende circunstâncias existentes e não meramente as contingências de
um futuro incerto”.[5]
A
decisão é extremamente polêmica, considerando que o Direito inglês não
possui um tratamento normativo similar ao brasileiro em matéria de
regime de bens. Como já afirmado, o Matrimonial Causes Act 1973 é um texto ultrapassado, com disposições contraditórias, graças às sucessivas emendas e que exige uma reforma urgente.
Os efeitos do julgado Radmacher v. Grantino, no Direito de Família inglês, são qualificados de duas formas, absolutamente antagônicas.
Seus
defensores entendem que essa virada jurisprudencial foi indispensável e
implicou o reconhecimento do novo perfil do casamento, uma instituição
inserida numa sociedade moderna, igualitária, na qual homens e mulheres
são senhores de seus destinos, capazes de tomar suas próprias decisões e
de assumir seus riscos. O casamento não pode ser visto mais como uma
sociedade de mútua assistência, em caso de fracasso da união conjugal.
Seus
críticos, por sua vez, apontam para a generalização desses acordos por
estímulo do acórdão da Suprema Corte, colocando a parte mais fraca
economicamente em permanente sujeição aos desígnios da parte mais forte.
Ademais, o desequilíbrio resultante da assimetria econômica, após
casamentos de longa duração, deixaria um dos cônjuges submetido às
intempéries da vida, da pobreza e do abandono. Além disso, o casamento
perderia seus últimos resquícios de uma instituição e se converteria simplesmente em um contrato, como, de certa forma, está posto no voto dissidente de Lady Hale.
Em
larga medida, o precedente inglês, se comparado à realidade brasileira,
apresenta peculiaridades muito específicas. A ausência de um modelo
legal de regimes de bens no Reino Unido é um ponto de grande impacto em
qualquer análise. No Brasil, boa parte da discussão contida no extenso
acórdão inglês seria inócua, ante o texto do Código Civil.
Outro
ponto diferenciador está na prévia eliminação, no Brasil, de questões
relativas à conduta das partes em face do regime de bens. Admitida a
permanência da culpa na separação, o que é hoje objeto de franca
polêmica doutrinária, a avaliação do comportamento adulterino de um dos
cônjuges é irrelevante para o regime de bens.
Em comum a ambos os
sistemas, existem dois tópicos fundamentais: a) o grau de informação no
ato de assinatura do acordo; b) a existência de patrimônio comum,
decorrente do esforço dos cônjuges, ao qual se daria o tratamento de
sociedade de fato, a despeito da separação convencional plena.
O
nível informacional não tem sido apreciado em nossos acórdãos. As
formalidades do casamento no Brasil, a seriedade do ato e os rigores
notariais são tantos que é pouco provável que esse argumento assuma
maior importância. No exame da jurisprudência, ele não aparece de
maneira autônoma. A única exceção está no aumento de matrimônios nesse
regime no Brasil, como efeito direto da perda da natureza institucional do casamento, o que permitiria o surgimento dessa tese, em roupagem mais sofisticada.
Paradoxalmente,
o julgamento da Suprema Corte do Reino Unido fechou as portas ao que é
mais discutido no Brasil: a comunhão patrimonial por esforço comum. Os
argumentos encontrados em precedentes mais antigos, como no caso White v. White [2001]
1 AC 596, são muito próximos dos utilizados nos tribunais brasileiros:
marido e mulher formaram juntos a riqueza conjugal, ainda que um deles
se tenha dedicado apenas à família e ao lar. A orientação inglesa,
doravante, está em vedar esse tipo de alegação, se o pacto for explícito
quanto à não comunicação patrimonial e não houver problemas ligados ao
dever de informar.
Finalmente, é de se observar que os ingleses
possuem hoje uma legislação muito confusa e omissa, por razões que
dispensam recitação, enquanto nós temos uma lei extremamente objetiva
sobre os regimes patrimoniais no casamento. A jurisprudência inglesa
respondeu a essa deficiência legislativa com uma decisão muito explícita
e rígida. Os tribunais brasileiros devem avaliar o melhor caminho a
seguir, que se bifurca entre a adoção de um modelo de julgamento por
equidade, que enfraquece o princípio da separação e gera incertezas, mas
evita injustiças n’algumas circunstâncias. Ou a via da rigidez, que,
eventualmente, pode levar a alguns resultados iníquos, mas não infirma a
segurança do regime de separação convencional.
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