O
Direito como um todo e o Direito Constitucional em particular, como se
sabe, vivem uma grave crise quanto aos métodos de fundamentação dos
problemas jurídicos[1].
Para além da doutrina, em todo mundo, cresce a desconfiança com a
capacidade dos tribunais, sobretudo das Cortes Constitucionais, de
estabilizar metodologicamente os processos de interpretação e de
aplicação de normas jurídicas as casos dispostos à sua consideração.
Mais
do que isso, diante das muitas incertezas e da evidente complexidade do
Direito Constitucional contemporâneo, parece manifestar-se com
preocupante frequência uma permanente transposição de planos entre, de
um lado, a esfera de alcance (Gewinnung) e de aplicação (Anwendung)
de premissas jurídicas aos casos concretos — esfera própria de atuação
do juiz — e, de outro, a esfera de legitimação política (Legitimation) e justificação (Rechtfertigung) moral das próprias premissas — esfera que deveria ficar restrita à decisão do legislador[2].
Tudo
isso explica, segundo Martin Kriele, porque o tom que marca boa parte
da nova literatura jurídico-constitucional, sobretudo quando tem que
enfrentar problemas metodológicos, seja mesmo o de mal-estar e de resignação.
De fato, não sem razão, cresce a impressão de que, mediante artimanhas
metódicas, confere-se cada vez mais espaço à vontade subjetiva dos
juízes e de que se está contra isso cada vez mais desamparado (hilflos) e impotente (ohnmächtig)[3].
Não
deixa de ser irônico, pois, que no passado, para escapar a problema de
mesma natureza, mas certamente de menor dimensão, Hans Kelsen tenha
recorrido, e com algum sucesso, precisamente, ao conhecido postulado da pureza metódica.
Nos tempos que correm, contudo, pela indiscutível grandeza e gravidade
do problema, o receio é que não tenhamos uma reposta que se mostre tão
simples, já que a investigação sobre os métodos, e nisto a ironia, ao
invés de solução, parece preferir juntar-se aos problemas.
Também refletindo sobre a relação entre método, praxis
e teoria jurídica, Karl-Heins Ladeur acusa um empobrecimento teórico no
âmbito do Direito Constitucional em favor de uma predominância quase
incontrastável daquilo que vêm produzindo os tribunais constitucionais.
Neste quadro, chega à conclusão de que um bom título sobre a discussão
teórico-constitucional em seu país (Alemanha) seria a frase meio
resignada, meio admirada, de Th. J. Lowi (referindo-se à ciência
política americana): Como nós nos tornamos aquilo que nós estudamos[4].
No contexto da doutrina e mesmo de boa parte da teoria constitucional
produzida atualmente, a frase bem poderia ser assim deduzida: Como nós nos convertemos naquilo que os tribunais decidem.
No caso, a queixa de Ladeur dirige-se, sobretudo, a certa abertura (talvez o mais correto seria indeterminação) metodológica por ele divisada na praxis das decisões constitucionais, consistente, sobretudo, na ausência de crítérios[5] nos juízos de ponderação e na ideia de Constituição e legislação aberta
que lhe serve de base, ou seja, uma Constituição e uma ordem jurídica
que, de forma flexível, se adapta aos temas formulados pela sociedade
através do mandado de compatibilização. Tudo isso, segundo o autor,
tem-se precipitado na ciência constitucional sob a forma daquele empobrecimento teórico[6] a que se fez refência.
Aqui,
talvez, uma crítica mais pertinente e produtiva deveria dirigir-se
menos à própria ideia de ponderação, ou de Constituição aberta, como
visualizadas pelo autor, e mais contra a forma irrefletida e passiva com
que boa parte nas inovações promovidas pelas Cortes Constitucionais têm
sido recebidas pela doutrina tradicional.
Neste contexto, segundo M. Kriele, expressões de forte apelo público como Estado Judicial (Justizstaat),
Estado dos Juízes, justicialização do Estado e da política, poder de
tutela dos juízes, usurpação e hipertrofia do poder da Justiça, apenas
vêm justificar a reclamação frequentemente sugerida de que os limites
constitucionais do poder dos juízes tornam-se, progressiva e
perigosamente, mais amplos. Alguns entendem ainda possível um recuo
nesse caminho, outros apenas se mostram, como se disse, resignados[7].
Tudo
isso acresce de preocupação quando se sabe que o objeto e finalidade da
discussão metódica são em primeira linha a limitação — e, se possível, a
eliminação — do arbítrio dos sujeitos encarregados da interpretação e
aplicação da Constituição, pois, nos limites do possível, obviamente, é a
Constituição e as leis, e não a vontade daqueles que têm a tarefa de
aplicar o direito, que devem ser concretizadas (Kriele). Para essa
finalidade são dispostas regras que devem tanto orientar o processo
jurídico de reflexão como separar as formas legítimas da argumentação
jurídica daquelas que são julgadas ilegítimas. Que a multiplicação
dessas regras e métodos possam, incrivelmente, estar contribuindo para
uma maior indeterminação e até crescimento da discricionariedade (às
vezes, convertida em arbítrio) nas decisões judiciais é apenas mais um
dos paradoxos da contemporaneidade.
De fato, se a busca por
restrições ao arbítrio judicial, através de uma teoria sobre métodos
jurídicos corretos e errados, pode apenas ser considerada como alcançada
na medida em que regras metódicas possam ser reconhecidas e observadas
com regularidade, tudo, então, parece indicar que estejamos entrando num
buraco sem fundo, o qual, quanto mais é explorado e aberto por
entusiastas da metódica, tanto mais se torna profundo, obscuro e, o que é
pior, distante do objetivo inicialmente buscado. Não se pode negar que é
absolutamente preocupante que, legitimada pelas mais variadas
metódicas, em situações concretas, a jurisprudência dê-se a liberdade de
determinar se a regra de fundamentação serve ou não aos resultados
pretendidos[8].
Pior ainda é intuir que, em tais situações, muito provavelmente, não
sejam regras metódicas que conduziram à decisão, mas, a decisão,
alcançada de forma diferente, que tenha orientado a escolha do método. A
questão metódica mais incômoda, no entanto, é saber se tudo isso pode
mesmo ser diferente.
Sem querer nem poder dar uma resposta a uma
questão tão complexa, que ultrapassa em grande medida os limites desta
coluna, há, contudo, que se concordar com M. Kriele, quando afirma que a
liberdade dos juízes decorre em grande parte, paradoxalmente, da forma
prodigiosa com que se vem travando a discussão metódica e, em
consequência disso, do fato de existirem vários métodos que, em maior ou
menor medida, são considerados respeitáveis e que, também por isso,
acabam conquistando defensores na doutrina do Direito Constitucional e
do Direito Eleitoral.
Esse grau de indeterminação metódica[9]
dificilmente será reduzido, causando uma impressão desconfortável de
que o esforço teórico por um método jurídico-constitucional se apresente
como algo quixotesco. Para ficar apenas em um dos problemas da
questão metódica, é compreensível, pois, que a falta de clareza quanto à
posição de cada um dos clássicos Cânones de interpretação, por
exemplo, tenha levado a um pensador como Josef Esser a declarar a
metodologia jurídica simplesmente como sem valor (wertlos)[10].
Por
tudo isso, Martin Kriele revela a impressão de que, aos defensores de
uma determinada orientação metódica, parece apenas restar a esperança de
formação de uma Escola ou a manutenção da tradição daquelas já
existentes, uma vez que, no melhor dos casos, eles apenas podem esperar
que, com o passar do tempo, um maior número de seguidores reforcem a sua
posição teórica, de onde partam para decidir vinculadamente sobre
interpretação das leis e, com isso, confirmem, então, em todas as suas
decisões, a sua adesão àquele método[11].
Por
outro lado, não se pode esquecer que outras dificuldades decorrem do
fato de os diferentes métodos jurídicos filiarem-se a diversas orientações condicionadas politicamente.
Como se sabe, a Constituição e o Direito pretendem revelar uma
estabilidade fundamental, consistente em normas jurídicas que, no máximo
possível, se subtraiam à disputa de posições políticas contrárias.
Assim, apenas poderiam ser consideradas corretas aquelas teorias da
interpretação jurídica que concretizem o máximo possível as decisões da
própria ordem jurídica sem a influência de opiniões, julgamentos ou
posições políticas. Todas essas teorias têm a pretensão de estar
cumprindo essa exigência e de conseguir determinar o método apenas pela
neutralidade da correção científica. Porém, não é difícil notar que,
apesar da neutralidade científica prometida, as diferentes orientações
axiológicas que têm curso em qualquer área do Direito e, em especial, no
Direito Constitucional, acabam ganhando maior facilidade de tráfego
precisamente pela existência de diversas escolas e tradições metódicas
no âmbito do Direito.
No centro dessas tradições, para ficar no
exemplo eloqüente de M. Kriele, estão sempre presentes — consciente ou
inconscientemente — antigas controvérsias políticas. Apesar, pois, da
neutralidade científica acalentada em todos os discursos metódicos que
atravessam o Direito Constitucional e o Direito Eleitoral, podem ser
observados, ao menos em suas linhas gerais e tendências, alguns sensos comuns teóricos que orientam e revelam as diversas concepções sobre a aplicação da Constituição. Como exemplos desses sensos comuns teóricos podem ser referidas aquelas orientações designadas por Martin Kriele como amiga do Poder Executivo (verwaltungsfreundliche), uma outra amiga ao Poder Legislativo (parlamentsfreundliche) e, mais recentemente, mas não com menos força, uma orientação amiga do Poder Judiciário (justizfreundliche)[12].
Pode-se
dizer que, sob o domínio das modernas Constituições, o poder das
tradicionais frentes de oposição Executivo-Legislativo já se encontra
relativizado pela presença de uma terceira posição: a do Poder
Judiciário. Contudo, como acima se registrou, não há nada que nos ponha
confiantes quanto ao fato de que a maior predominância dos métodos
próprios do Poder Judiciário, no âmbito de aplicação de normas
constitucionais, nos possa colocar a salvo de posições mais racionais e
menos ideológicas[13].
Na verdade, para finalizar, enquanto as Cortes, em todo mundo, e no
Brasil em especial, vão tornando confusos e indistintos os métodos de
aplicação do Direito, o que de pior pode acontecer é acentuar-se em
demasia qualquer grau de autoconfiança metódica ou discursiva.
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