Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça firmou seu entendimento no sentido de que "a Lei de Arbitragem aplica-se aos contratos que contenham cláusula arbitral, ainda que celebrados antes da sua edição", donde a edição do verbete 485 da Súmula daquele Tribunal.
O Supremo Tribunal Federal, por
sua vez, julgou constitucional a Lei de Arbitragem (Sentença Estrangeira
5.847) por entender que o princípio da inafastabilidade do Poder
Judiciário é dirigido apenas ao legislador e, por extensão, também ao
magistrado. Não é, todavia, – o princípio, dirigido ao jurisdicionado.
Este, considerada a matéria dispositiva, pode recorrer, pelo princípio
da autonomia da vontade contratual, a outros equivalentes jurisdicionais
para dirimir eventuais questões negociais.
Assim, a ratio decidendi
subjacente à decisão do Supremo Tribunal Federal em prol da
constitucionalidade da Lei de Arbitragem repousa no fato de que o
particular é livre para escolher um árbitro que dirima conflitos
negociais.
Essa premissa fundamental – a
autonomia da vontade, não se discute no presente artigo. O que se
pretende aqui é levá-la em conta e mesmo partir dela para concluir - de
forma diversa do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que a Lei
de Arbitragem não pode ser aplicada a contratos anteriores à sua
edição, sob pena de malferimento à própria autonomia da vontade, à
própria premissa acolhida pelo Supremo Tribunal Federal.
A cláusula compromissória, por versar um facere infungível,
antes da Lei de Arbitragem, gerava apenas uma obrigação de fazer, que,
se inadimplida, resolvia-se em perdas e danos. A Lei de Arbitragem, por
sua vez, ao dispensar o compromisso, modificou essa sistemática para
conferir força executória imediata à cláusula compromissória.
Admitir a execução forçada da
cláusula compromissória nos contratos anteriores à novel lei implica
alterar todo o contexto normativo, assim como o universo de
previsibilidades jurídicas que informaram o ajuste à sua época, donde a
violação do ato jurídico perfeito, da segurança jurídica, da
irretroatividade das leis e da proteção da confiança.
É princípio geral adotado
expressamente pela maioria dos sistemas normativos, embora com variantes
de afirmação, o de que as regras de direito operam a partir de sua
vigência temporal, produzindo, assim, efeito prospectivo.
O referido axioma, ao cabo de
longa evolução histórica, passou a ser considerado como atributo
essencial do ato normativo, a fim de que as normas jurídicas não
retrocedam a situações pretéritas e consumadas antes da sua edição e
entrada em vigor. Trata-se
de exigência da segurança jurídica e da proteção da confiança alçada em
garantia supralegal por muitos diplomas constitucionais e pelas
declarações internacionais da era moderna e contemporânea.
O domínio da lei abrange, por
princípio, o presente e o futuro. Não importa, para efeito de incidência
da generalidade dos textos normativos, as situações decorridas
anteriormente à sua positivação.
Busca-se, de conseguinte, com o
cânone da irretroatividade, evitar que os sujeitos nas relações
jurídicas sejam, no amanhã, surpreendidos e constrangidos pelo advento
de um imprevisto regime legal que pudesse disciplinar, sob outro teor e
conseqüências, suas condutas pré-constituídas.
No vigorante direito
constitucional brasileiro o princípio da irretroeficácia das leis
acha-se verbalizado sob o mesmo enunciado introduzido pelo constituinte
de 1934, estatuindo o inciso XXXVI do art. 5º da Constituição de 1988
que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
Significa dizer que a norma
somente poderá produzir efeito retroativo se e enquanto não desafiar o
direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito.
É irrelevante se material ou
processual a Lei da Arbitragem. O fato é que não poderá ela retroagir
para atingir os efeitos de negócio jurídico perfeito, sob pena de violar
o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
A lei nova pode, excepcionalmente,
em face de fato ou circunstância novos que não possam ser ignorados
pelo direito em razão de sua repercussão, alterarpara o futuro a forma
de cumprimento da obrigação contratada. Não pode, contudo, sem ferir o
conteúdo constitucional, alterar a substância mesma ou a causa de ser da
obrigação.
Ainda excepcionalmente, e só na
ordem pública, por fato do príncipe, é que poderá - a lei nova,
desconsiderar aquela substância mesma da obrigação contratada. Foi o
caso da reconstrução da Europa após a 2ª Guerra, quando invalidado o
direito emanado do III Reich.
Logo, como se vê, a exceção é excepcionalíssima.
Assim, ainda por exemplo, os
contratos que previam correção pela variação cambial. Ora, alterada
estruturalmente a relação econômica, evidenciada ficou a ineficácia da
cláusula em face do desaparecimento de seu suporte fático. Daí a
jurisprudência que, sabiamente, sem afetar a motivação material do
contrato, decidiu que, mantidos os contratos, as prestações posteriores
se dariam conforme a nova lei. Não houve, portanto, violação do ato
jurídico perfeito, mas, tão somente, um aperfeiçoamento do meio que
garantia a sua eficácia (mediante o equilíbrio econômico-financeiro do
contrato).
Ora, a Lei de Arbitragem não é de
ordem pública. Não há, pois, que se falar em alteração da forma de
implementação do contrato anterior.
Mesmo que assim não fosse – a
irrelevância da natureza processual ou material da Lei de Arbitragem, o
fato é que a cláusula compromissória é obrigação de fazer que, se
descumprida, deve ensejar, no máximo, indenização por perdas e danos.
Esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
"Cláusula compromissória (pactum de compromitendo) ainda não é o compromisso constitutivo do juízo arbitral, mas obrigação de o celebrar. Trata-se de uma obrigação de fazer, que se resolve em perdas e danos e que, como pacto de ordem provada, não torna incompetente o juiz natural das partes, se a ele recorrerem" (STF, RE 58.696, REl. Min. Luiz Gallotti, RTJ 42).
Como obrigação de fazer, a
cláusula compromissória é instituto de direito material, protegida,
portanto, pelo princípio constitucional de respeito aos atos jurídicos
perfeitos.
Permitir a retroação das regras da
Lei de Arbitragem significa introduzir novas regras no ajuste
originário, em frontal e lesiva violação ao ato jurídico perfeito, seu
consectário lógico, a segurança jurídica e também à irretroatividade das
leis.
Trata-se de normas constitucionais
– a irretroatividade da lei e a observação do ato jurídico perfeito, de
maior relevância jurídica que a norma da Lei de Arbitragem, porque,
dispostas no art. 5º, inciso XXXVI da Constituição da República, foram
elevadas ao patamar de garantia fundamental do jurisdicionado.
Por outro lado, importa destacar a
inaplicabilidade do Protocolo de Genebra de 1923 como instrumento
normativo capaz de ensejar a incidência da ratio essendi da Lei de Arbitragem - execução imediata da cláusula compromissória, aos contratos firmados antes de 1996.
Até 1939, não havia legislação
processual unitária no Brasil. Daí que, naquela época, os ditames do
Protocolo de Genebra - ratificado em 02 de março de 1932, eram, sim,
aplicáveis aos contratos internacionais.
Ocorre que, após o Código Unitário
(1939) e em especial o Código de 1973, os efeitos da instauração da
arbitragem ficaram condicionados ao compromisso (cf. art. 1.073 – antes da revogação pela Lei de Arbitragem).
A ausência do compromisso - ato formal de conteúdo insubstituível, era, inclusive, causa de nulidade (cf. art. 1.074 - antes da revogação pela Lei de Arbitragem) da decisão arbitral.
Nítido, portanto, o conflito entre
a norma internacional ratificada no Brasil - o Protocolo de Genebra, e a
norma interna posterior - o Código de Processo Civil.
Na Constituição Federal de 1988, não consta critério
específico e expresso para solução dos conflitos entre Tratados
Internacionais e o direito interno. A matéria é de cunho constitucional e
cabe, na falta de fonte legal, à jurisprudência, sua definição.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, entende que o
tratado internalizado e a lei infraconstitucional interna encontram-se
num mesmo patamar hierárquico de lei ordinária.
Este entendimento foi consagrado no importante
precedente firmado quando do julgamento do Recurso Extraordinário
80.004, de 1977 (Rel. Ministro Xavier de Albuquerque, RTJ 83/809).
Tratava-se do caso envolvendo a Lei Uniforme de
Genebra sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias, que entrou em vigor
com o Decreto 57.663, de 1966, e uma lei posterior, o Decreto-lei
427/69. O conflito relacionava-se à obrigatoriedade ou não da exigência
de registro do título de crédito na Receita Federal para manter sua
força executória - exigência formal de validade do título que não
constava no texto internacional. Prevaleceu, pois, o Decreto-lei 427/69.
Mais recentemente, já decidiu o Supremo Tribunal Federal que “os
tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente
incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico
brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade
em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre
estas e os atos de direito internacional público, mera relação de
paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos
internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de
direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções
internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno
somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento
doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa
do critério cronológico ("lex posterior derogat priori") ou, quando cabível, do critério da especialidade. Precedentes. (ADIn 1480, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 18/5/2001)
Assim, o fato é que o Supremo
Tribunal Federal firmou há muito, quando do julgamento do Recurso
Extraordinário 80.004, posicionamento acerca da possibilidade de
revogação dos Tratados Internacionais – aqui positivados, pela
legislação brasileira posterior.
Com efeito, se a norma internacional foi transformada "em
direito positivo brasileiro, evidente que pode ser modificada ou
revogada, como qualquer outro diploma legal. Do contrário,
transformar-se-ia qualquer lei que procedesse de algum tratado em super
lei, em situação superior à própria Constituição Brasileira" (trecho do voto do Ministro Cunha Peixoto quando do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004).
Assim, o Protocolo de Genebra foi revogado pelas normas brasileiras processuais posteriores.
O afastamento do Protocolo de
Genebra independe da natureza do contrato – se internacional ou não, mas
decorre mesmo da violação a ditame da ordem jurídica interna brasileira
posterior à sua internalização: o necessário compromisso para ter
eficácia e validade o laudo arbitral.
A única exceção à prevalência do
direito interno posterior a norma de tratado veio com a Emenda
Constitucional 45/04 ao cuidar dos direitos humanos: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros, serão equivalentes as emendas constitucionais” (art. 5º, §3º, da CF/88).
Aqui - nos contratos privados, por óbvio, não se cuida da exceção constitucional.
É inconstitucional, portanto,
conceder execução imediata a cláusula compromissória de contratos
firmados antes de 1996 sob o argumento da aplicabilidade do Protocolo de
Genebra porque incongruente com o critério cronológico estabelecido
pelo Supremo Tribunal Federal para a solução dos conflitos existentes
entre o tratado internalizado e a norma de direito interno posterior.
Assim, em que pese o entendimento
do Superior Tribunal de Justiça, refletido na Súmula 485, a cláusula
compromissória prevista em contratos anteriores à Lei de Arbitragem não
deve ter execução imediata, seja em respeito ao ato jurídico perfeito e
ao princípio da irretroatividade das leis, seja em razão da revogação do
Protocolo de Genebra pelo Código de Processo Civil brasileiro.
Por ser o tema de índole eminentemente constitucional, a última palavra caberá ao Supremo Tribunal Federal.
Comentários
Postar um comentário