O incidente para uniformização, por Marcelo Alves Dias de Souza procurador regional da República

Nos últimos tempos, ao passar a atuar como Procurador Regional da República perante um órgão colegiado (no caso, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região), eu tenho ficado cada vez mais consciente da importância que se deve dar à uniformização dos entendimentos judiciais. Muito embora mudanças de entendimento sejam possíveis (e, às vezes, imperiosas), uma das maiores preocupações da Turma do TRF em que atuo é, como disse um juiz conterrâneo e amigo nosso que andou ali substituindo, evitar "marolas" desnecessárias acerca do que já está consolidado no colegiado.

Um dos instrumentos que o Direito brasileiro dispõe para fins de uniformização das decisões judiciais - embora, a meu ver, pouco usado - é o incidente de uniformização de jurisprudência, previsto no nosso Código de Processo Civil, nos arts. 476 a 479. Seu nome já revela a preocupação do nosso sistema jurídico, à semelhança dos sistemas jurídicos da maioria dos países, em dar uniformidade ao entendimento sobre o "Direito" dentro de um mesmo tribunal.

O procedimento do incidente de uniformização é, em resumo, o seguinte: no julgamento em órgão fracionário de tribunal (turma ou câmara, em regra), verificando-se que há na corte decisões divergentes sobre uma mesma tese jurídica, submete-se, a requerimento da parte, do Ministério Público ou mesmo de ofício, a análise da tese jurídica à seção civil, corte especial ou pleno (órgão uniformizador), para que este, previamente, sobre ela se manifeste; o julgamento no órgão fracionário fica sobrestado até que o órgão uniformizador decida o incidente; decidido o incidente, o seu resultado será aplicado, em seguida, obrigatoriamente, pelo órgão fracionário ao julgar o caso concreto.

Vale lembrar que o pronunciamento do órgão uniformizador, no incidente, será sobre a tese jurídica ou, usando a letra do CPC, sobre "a interpretação do direito", e não sobre os fatos do caso concreto. Sobre os fatos decidirá, em seguida, o órgão fracionário do tribunal, já vinculado à interpretação dada à "tese jurídica" pelo órgão uniformizador.

É importante ainda frisar que, primeiramente, há uma vinculação do órgão fracionário (turma ou câmara, em regra) no julgamento do caso concreto que deu ensejo ao incidente: ele ficará vinculado à tese fixada pelo órgão uniformizador (CPC, art. 478). Mas também dispõe o CPC, no seu art. 479, que o julgamento do incidente, tomado pela maioria absoluta dos membros do tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência. A decisão do incidente (ou seja, a "tese jurídica" estabelecida) produz, assim, uma dupla ordem de efeitos, como diz José de Albuquerque Rocha, autor de uma obra clássica sobre o tema ("O procedimento da uniformização da jurisprudência", publicado pela RT): "deve ser observada pelo órgão competente no julgamento do caso concreto (art. 478) e constitui precedente na uniformização da jurisprudência (art. 479)". Dito isso, conclui-se que a "tese jurídica" estabelecida, enquanto precedente, vincula o próprio tribunal que a elaborou, que fica obrigado a segui-la nas suas decisões futuras sobre casos análogos, ressalvada a possibilidade de alteração ou revogação do precedente, seguindo o procedimento próprio para tanto. Nada mais natural, eu acredito, uma vez que o tribunal é um órgão só, apesar de dividido, para fins funcionais, em órgãos fracionados. Estes (e os julgadores, individualmente), por conseguinte, devem seguir o entendimento da corte como um todo, representada pela decisão do seu pleno, da corte especial ou da seção cível no precedente de uniformização da jurisprudência.

Há quem defenda, é verdade, que fica a critério do tribunal, após decidir o incidente de uniformização, emitir súmula a respeito, concluindo que nem sempre haveria a vinculação futura para a corte como um todo. Considero ruim esse entendimento. Bastante tímido, joga por terra o efeito prático de maior amplitude e mais importante do incidente. Não basta vincular o órgão fracionário à interpretação dada à tese jurídica pelo órgão uniformizador apenas no caso concreto que deu origem ao incidente; o mais importante, se obtida maioria absoluta, é uniformizar, como um todo, o entendimento do tribunal para os casos em que a mesma tese jurídica seja discutida, garantindo, assim, a desejada isonomia de tratamento. A vinculação futura para toda a corte impede, por exemplo, que a sorte dos litigantes fique sempre na dependência da distribuição do caso a determinada turma ou câmara. Essa vinculação trabalhará para manter a unidade do direito no tribunal, evitando ou minorando o descrédito dos jurisdicionados, coisa tão comum hoje em dia, quanto à correção da prestação jurisdicional.

Então, caro leitor, que tal usarmos mais frequentemente desse tal incidente de uniformização?

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