Uma das características
marcantes da sociedade de consumo em todos os tempos é a de que os
consumidores em geral não tem capacidade financeira para adquirir a
maior parte dos produtos e serviços oferecidos. A partir de um certo
momento na história, especialmente após o período da revolução
industrial, cada vez mais os fabricantes passaram a produzir bens em
grandes quantidades. O intuito como sempre era o lucro. Com o aumento da
tecnologia de produção, passou-se a poder produzir em série, de tal
modo que o produto final foi ficando cada vez mais barato. O produtor
passou a ter um menor lucro por cada produto vendido, mas como vende em
muito maior quantidade, fatura mais e ganha mais. A criação de novos
produtos e serviços fez a quantidade de variedade crescer ao infinito.
Isso me faz recordar Sócrates que, quatro séculos antes de Cristo, foi
ao mercado em Atenas e disse: "Como são numerosas as coisas de que eu não preciso".
Hoje, frequentando qualquer shopping center e observando a incrível e
enorme quantidade da oferta, o famoso filósofo talvez perdesse sua
natural simplicidade e sua imbatível lucidez.
A verdade é que o
sistema capitalista que vingou, de produção em massa de produtos
necessários mas também supérfluos, inúteis, só cresceu com o passar do
tempo. Mas, havia um problema: os consumidores continuavam sem dinheiro
para adquirir os bens oferecidos. Isso no século XX foi resolvido com a
criação do sistema de oferta de créditos em massa, dos empréstimos
pré-aprovados, dos financiamentos a longo prazo e, claro, dos cartões de
crédito, a porta de entrada no paraíso das compras, que permite
aquisição de produtos e serviços para o consumidor que não tem dinheiro
algum.
A oferta de crédito,
todavia, tem seu próprio limite na capacidade de pagamento do
consumidor-tomador. Não adianta oferecer crédito fácil se, do outro lado
da oferta, há limites restritos de devolução. Ou, dizendo de outro
modo, é preciso que o fornecedor controle a capacidade de pagamento de
seus clientes (daí, em parte, a justificativa para a existência dos
cadastros negativos e positivos de crédito).
Para piorar o quadro,
no Brasil, o mercado criou um modelo de financiamento para quase tudo
que existe à venda pela criação do cheque pré-datado, (invenção
nacional) o que inclui produtos que, em outros lugares, só se compram à
vista.
Um bom exemplo é o
combustível: o consumidor enche o tanque de seu veículo pagando com
cheques pré que, por sua vez, acumulam-se junto de outros relativos às
demais compras, numa substituição sem fim (nesse emaranhado de cheques, é
muito comum que o consumidor perca-se na administração doméstica e
acabe, fatalmente, emitindo cheques sem fundo). O consumidor, então, usa
hoje o combustível que pagará no mês seguinte ou dois ou três meses
depois.
Essa questão do
superendividamento dos consumidores – especialmente, no âmbito familiar –
é, atualmente, um dos temas centrais das preocupações dos
consumeristas, tanto que, no projeto de lei do Senado Federal que
pretende atualizar o Código de Defesa do Consumidor, foi feita proposta
de proteger o consumidor contra essa mazela.
O problema é que os
fornecedores – concorrendo entre si para oferecer crédito em larga
escala, ainda que tentando controlar os riscos – acabam estimulando
sobremaneira a aquisição de produtos e serviços a prazo, no que contam,
naturalmente, com a ajuda da longa mão do marketing massivo.
Por tudo isso, é mesmo
muito importante que o Estado intervenha no mercado para regular o
crédito. Infelizmente, o que se tem observado nos últimos tempos é um
estímulo às aquisições a prazo, em função da crença de que o aumento das
vendas é o mais importante elemento que tem valor no capitalismo, o que
gerou uma forma de crédito perniciosa. Acabou sendo adotado o modelo
que é muito usado pelas grandes lojas populares de varejo que vendem
móveis e eletrodomésticos e atendem às classes C, D e E. Essas, como se
diz, não "vendem propriamente" uma cama, um sofá ou um armário. Elas
vendem "prestações de pequenos valores" pelas quais os consumidores
adquirem esses bens.
A estratégia é, pois,
descobrir "quanto" de valor de uma prestação cabe no salário do
consumidor para, após esse cálculo, fazer as ofertas. Daí que o prazo é
sempre alongado e, já que o cálculo é bem feito, não custa nada embutir
generosas taxas de juros nas prestações, eis que o crediário é feito por
empresas financeiras ligadas aos lojistas.
Conclusão: o consumidor
consegue comprar alguns produtos, pagando por meses e anos a fio. Não é
incomum que, ao final, o consumidor tenha adquirido um armário e pago o
preço de três ou quatro.
Mas, esse é um sistema
que, bem ou mal, funciona – porque os consumidores, mesmo pagando caro,
conseguem a longo prazo adquirir certos produtos, o que não seria viável
à vista, pelo menos não frequentemente. No entanto, essa mesma fórmula
aplicada à venda de veículos automotores – especialmente, automóveis – e
também aos imóveis, não funciona tão bem.
Isso porque, quando o
consumidor adquire um automóvel pelo fato de que a prestação "cabe" na
sua renda – no seu salário -, comete um erro, pois se esquece de
considerar os demais custos ordinários e extraordinários ligados ao
produto.
Um automóvel, por
exemplo, gera gastos imediatos e rotineiros com manutenção (revisões,
trocas de peças, óleos, etc.), impostos, taxas, seguros obrigatórios e
voluntários, além do consumo regular. De cara, sem recursos, o
consumidor acaba não fazendo o seguro voluntário para se garantir contra
acidentes e roubos. Se sofrer um, já perde tudo. E, essas
circunstâncias, a longo prazo, proporcionalmente, só pioram, porque o
custo da manutenção aumenta e os demais permanecem. Chega uma hora em
que a prestação cabia no salário, mas todos os demais custos não.
Fatalmente, o consumidor tornar-se-á inadimplente, sendo que os veículos
retornarão aos financiadores. A esse propósito, nos últimos dias, a
imprensa noticiou que, de fato, a inadimplência no setor de veículos
financiados cresceu brutalmente e já existe um acúmulo desses produtos
nos pátios de leilões, que estão abarrotados.
Pode-se dizer o mesmo
em relação à venda de imóveis, principalmente, aqueles oferecidos também
a essas classes de renda, eis que não basta que a prestação caiba no
salário, uma vez que, como se sabe, imóveis não só exigem manutenção e
pagamento de tributos e taxas, como os mais populares estão sendo
entregues ao mercado praticamente apenas com as paredes e o chão. O
consumidor tem que adquirir o bem e, depois, ainda tem que gastar muito
para equipá-lo adequadamente para uso. Só para ficarmos com alguns
elementos, há apartamentos sendo oferecidos com chão de cimento, sem
aquecedor, sem chuveiro, sem uma série de utensílios que são
absolutamente necessários. Aliás, e a propósito, anoto que não é raro
que o consumidor adquira apartamentos em construção e depois não tenha
dinheiro suficiente para pagar o ITBI e as taxas de Cartório.
O
mercado, portanto, é repleto de armadilhas. Em algumas delas, é
verdade, o tiro pode sair pela culatra, o que pode acontecer quando um
grupo muito grande de consumidores é atingido simultaneamente gerando
crise em bloco e afetando um específico fornecedor ou vários do mesmo
setor. Mas, do lado do consumidor, ávido por consumir - na crença de que
assim pode ser feliz - as chances dele sair-se mal nas operações são
grandes. Falta, pois, educá-lo adequadamente para que ele possa
compreender os riscos reais que corre ao efetuar compras a prazo, além
claro, de ser adotada uma política de financiamento mais realista e que
possa proteger o polo de consumo.
________________________
* Rizzatto Nunes
Desembargador do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.
Comentários
Postar um comentário