Inversão do ônus da prova no novo CPC


 
A cognição vertical no processo passa por diferentes estágios de profundidade no conhecimento dos fatos e é formada progressivamente pelos juízos de verossimilhança, probabilidade e certeza. A verossimilhança equivale a um baixo grau de probabilidade, e se colocaria no extremo inferior de uma escala de valores que tem, no outro extremo, a certeza do fato.
A verossimilhança é um juízo fundado no confronto da simples alegação com as regras ordinárias da experiência. É o mais superficial dos juízos, pois, se baseia numa simples alegação, correspondente ao que normalmente acontece (id quod plerumque accidit). Pode ser verificada a partir das alegações contidas na petição inicial. A probabilidade, por sua vez, tem um grau de cognição superior ao da verossimilhança e inferior ao da certeza. Baseia-se num começo de prova (indício). Pode ser verificada a partir da apresentação de algumas provas, mesmo que ainda não submetidas ao crivo do contraditório. A certeza, por sua vez, é um juízo formado na sentença, após o contraditório e a valoração de todas as provas do processo. A certeza processual (ou verdade relativa) representa o grau de cognição que mais se aproxima da verdade no processo, atingível apenas no aspecto relativo (Michele Taruffo. Presuzione, inversioni, prova del fatto. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano, p. 743-744, set-1992).
No direito processual civil brasileiro, a regra geral do ônus da prova encontra-se insculpida no art. 333 do CPC. Trata-se de uma norma dirigida não só ao juiz quando há falta de provas (regra de julgamento), mas também às partes, indicando a elas, previamente, que a prova dos fatos constitutivos cabe ao autor e a prova dos fatos impeditivos, modificativos e extintivos cabem ao réu (regra de conduta).
A inversão do ônus da prova causa alterações na regra geral de distribuição probatória e provoca a liberação ou a diminuição do encargo probatório de uma das partes em detrimento da outra. Tem a finalidade de facilitar a produção da prova e proporcionar melhor igualdade das partes no processo. Faz com que o réu, no processo, tenha que fazer prova da inexistência dos fatos que são constitutivos do direito do autor, ou que este, tenha que fazer prova dos fatos que são impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do réu.
A legislação utiliza-se de três técnicas de alteração da regra geral do ônus da prova prevista no art. 333 do CPC: a) inversão legal - efetivada diretamente pelo legislador através de regras com presunções legais relativas ou imputações legais de prova. Assim, por exemplo, ao consumidor devedor de prestações de trato sucessivo é dispensada a prova do pagamento das prestações anteriores, mediante a apresentação da quitação da última parcela - art. 322 do Código Civil; b) inversão judicial - efetivada através de autorização legal para que o juiz inverta o ônus da prova. O art. 6º, inc. VIII do CDC é um exemplo típico de inversão a ser feita pelo juiz, mediante a presença dos requisitos da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiência do consumidor na relação processual. c) inversão convencional - efetivada através de convenção entre as partes, estipulada no contrato ou durante o processo através de transação, conforme dispõe o art. 333, parágrafo único do CPC.
O art. 6º, inc. VIII, do CDC, atribui ao consumidor a vantagem processual de ser beneficiado pela inversão do ônus da prova, quando o juiz verificar, através das regras ordinárias da experiência comum, a presença de qualquer dos requisitos: verossimilhança das alegações do consumidor ou a hipossuficiência processual na produção de alguma prova. Determinada a inversão, recai sobre o fornecedor, o ônus de provar a inexistência de um ou alguns fatos que são constitutivos do direito do consumidor.
Verifica-se que a inversão ope iudicis do ônus da prova, prevista no art. 6º, inc. VIII do CDC, não exige um juízo de probabilidade, calcado num começo de prova, mas apenas um juízo de verossimilhança, de verdade superficial e de aparência com outros fatos semelhantes. Baseia-se nas simples alegações do consumidor e é verificado pelo juiz utilizando-se das regras ordinárias da experiência comum. Este juízo indica que o limite de cognição vertical nesta fase do processo, formulado pelo juiz para deferir ou não a inversão, recai apenas sobre as alegações dos fatos feitas pelo consumidor ainda na petição inicial. Não se exige qualquer começo de prova, como acontece no juízo da probabilidade (cognição exigida para antecipação de tutela do art. 273 do atual CPC).
Assim, por exemplo, um consumidor alega que seu veículo foi arrombado no estacionamento do Shopping ou; que o seu aparelho celular não funciona adequadamente. São hipóteses que acontecem repetidas vezes, com frequência, dentro de uma normalidade, aferíveis pela ordinária experiência, por isso são verossímeis. E basta esta avaliação para ser deferida a inversão do ônus da prova. A verossimilhança é um juízo extraído das regras ordinárias da experiência comum, concernente à verificação da frequência ou normalidade da ocorrência de fatos semelhantes.
O outro requisito, a hipossuficiência processual, reflete basicamente a pior condição técnica ou prática, até mesmo econômica (não necessariamente) ou jurídica de uma das partes de realizar determinada prova imprescindível para o esclarecimento da questão.  A comparação sobre quem tem a melhor condição de produzir determinada prova é feita caso a caso, fato a fato, em relação a cada uma das partes, em cada ação, especificamente. A hipossuficiência é determinada mediante a formulação da seguinte pergunta: Qual das partes tem a pior condição de produzir determinada prova específica? A formulação da resposta passa pela utilização das regras ordinárias da experiência. Será hipossuficiente a parte com maior dificuldade na produção da prova específica sobre determinado fato.
Ao tratar da inversão do ônus da prova, o art. 262 do anteprojeto do novo código de processo civil, estabeleceu a hipossuficiência de uma das partes como único requisito para inversão do ônus da prova. O referido artigo dispõe que a inversão do ônus da prova é determinada pelo juiz, fundamentadamente, à parte que mais acentuadamente detiver: (a) conhecimentos técnicos ou; (b) informações específicas sobre os fatos ou; (c) maior facilidade em sua demonstração. Os requisitos são alternativos e estão relacionados à situação de hipossuficiência de uma das partes em comparação com a outra, a ser observada em relação à produção de uma prova específica.
Observa-se que, diferentemente do art. 6º, inc. VIII do CDC, aqui, a inversão não tem a verossimilhança das alegações como requisito e nem faz referência à utilização das máximas da experiência. O legislador também não mencionou qual o grau de cognição vertical necessário para o juiz fundamentar a inversão do ônus da prova: se no juízo de verossimilhança das simples alegações (como no CDC) ou no juízo de probabilidade calcada num começo de prova, como ocorre na antecipação de tutela do art. 273 do atual CPC.
A omissão não nos parece um acaso, mas, a indicação de que a cognição vertical na inversão do ônus da prova, estabelecida no art. 262 do anteprojeto do novo código de processo civil, pode ocorrer tanto num juízo de verossimilhança, baseado na simples alegação, como no da probabilidade, calcado num começo de prova. Caberá ao Magistrado, em decisão fundamentada e conforme a complexidade da causa, avaliar se a inversão ocorrerá com base na simples alegação da parte (num juízo de verossimilhança) ou se exigirá um começo de prova (juízo de probabilidade).



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