"Terra da Garoa"

FLÁVIA MANTOVANI

DE SÃO PAULO

Quando os oito lugares mostrados nesta reportagem começaram a funcionar, São Paulo ainda não tinha shopping center, metrô ou Minhocão.

O Masp não ficava na avenida Paulista. Se nos ativermos apenas aos quatro estabelecimentos mais antigos, veremos uma cidade que nem parece São Paulo, já que símbolos como o parque Ibirapuera, o estádio do Pacaembu, a atual catedral da Sé e os edifícios Copan e Martinelli ainda não haviam sido criados.

O mais antigo deles, aliás, o edifício Tereza Toledo Lara, foi construído em um centro da cidade em que o Teatro Municipal ainda estava em obras, e apenas 12 anos depois abrigaria a Semana de Arte Moderna.

Ano após ano, eles resistiram e mantêm aparência muito semelhante à de antigamente. Com prateleiras e móveis de madeira maciça, espelhos de cristal belga e calculadoras e cofres de mais de 30 anos atrás, esses locais parecem ter parado no tempo e mexem com o saudosismo dos clientes ou visitantes, muitos deles fiéis há mais de meio século.

Palacete Lara
Se tudo correr de acordo com os planos dos administradores do Palacete Tereza Toledo Lara, o prédio será cenário, em breve, de uma curiosa convivência entre o velho e o novo.
Tombado e com as características originais preservadas, o imóvel passará por restauração que deve mantê-lo idêntico a como era no passado.
A inovação fica por conta dos novos ocupantes: segundo Thiago Gomes, consultor empresarial da proprietária, a ideia é alugar as salas a recém-formados, principalmente de direito, que voltam a ocupar o centro após a revitalização de alguns prédios.

Projetado pelo arquiteto alemão Augusto Fried e construído em 1910, o prédio foi do conde Antonio de Toledo Lara, um dos fundadores da Antarctica e financiador da restauração da catedral da Sé. O nome foi homenagem à filha, então com sete anos.

No hall, os ladrilhos hidráulicos, os azulejos e o elevador, francês e com grade manual, deixam clara a idade do prédio. A rádio Record funcionou lá, assim como várias lojas de instrumentos musicais. Por isso, o edifício era conhecido, na década de 40, como "a esquina musical de São Paulo". Hoje, restou uma loja do ramo em um dos três andares do prédio, que ainda é da família Lara. A restauração deve começar neste ano.

Endereço: r. Quintino Bocaiúva, 22, centro
Salão Phidias
Os espelhos, de cristal belga, estão em perfeito estado. As cadeiras são de fórmica boa, de quase 50 anos atrás. O piso é de pedra portuguesa e não tem uma rachadura.

Mas não são só as instalações da barbearia Phidias, instalada em uma galeria da rua 24 de Maio, que permanecem iguais há 45 anos. O serviço oferecido também é à moda antiga.

Faz-se a barba seguida de sauna facial. As pias ficam na bancada e permitem que o cliente faça o tradicional mergulho para a frente, diferentemente dos lavatórios modernos. Só a navalha foi aposentada e deu lugar a lâminas descartáveis, conta Luís Antonio da Silva, 54, dono do negócio.

Criado em 1965 pelo italiano Bruno Mingozzi, o salão passou para as mãos de Jair Silvestre de Lacerda, 73, que até hoje trabalha lá.

O atual dono, que está no local há 25 anos, comprou o Phidias há sete anos. Luís é de uma família de barbeiros -todos os seus 11 tios seguiram essa profissão e tem sete primos que trabalham juntos em uma barbearia do Rio. Quer escrever um livro sobre o Phidias, que tem "muita história".
O lugar já teve clientes ilustres, como o presidente Jânio Quadros e os homens da família Safra. Hoje, a maior parte da freguesia é formada por pessoas mais velhas.

Há inclusive os que vêm de outras cidades ou até do exterior. "Esteve hoje aqui um cliente americano que corta cabelo duas vezes ao ano, só quando vem ao Brasil", conta Luís.

O arquiteto que projetou o salão também é cliente habitual. "Ele vem sempre aqui e fica olhando as maravilhas do passado."

Endereço: r. 24 de Maio, 77, ou 
r. Barão de Itapetininga, 88 (galeria R. Monteiro), loja 8, tel. 0/xx/11/3223-6534
A Fidalga
Os provadores da loja de sapatos A Fidalga têm um elemento incomum: em volta dos bancos de mogno com veludo azul --mesma estampa floral há 82 anos--, uma proteção esconde a parte de baixo do corpo de quem experimenta os calçados.

Isso tem a ver com a época em que a loja foi criada, em 1928. "As mulheres não podiam mostrar as pernas. Os provadores são fechados, para que fiquem isoladas", conta Maria Christina Hernandez, proprietária. A loja, inspirada em um comércio de Milão, foi fundada por seu pai, passou para seu irmão e hoje é tocada por ela e a irmã, Thereza Christina.

A sensação de volta no tempo começa pelo edifício Casa das Arcadas, onde fica a loja, tombado e recém-restaurado. O local também conserva o pé-direito alto, os estoques aparentes e as cadeiras de madeira maçica que os clientes querem até levar para casa. Só as vitrines, antes abertas à visão mesmo com a loja fechada, tiveram que ser adaptadas aos tempos de insegurança. Hoje são cobertas à noite por portas de ferro.
O estilo dos sapatos de couro é clássico. "Uma coisa fina, confortável e de qualidade. É diferente de shopping, onde se encontra mais modinha", diz Maria Tereza, 33, filha de Maria Christina e gerente da loja. Alguns ainda são feitos à mão.

Thereza Christina conta que o lugar era frequentado pela "nata". "Era talvez a loja de sapatos mais chique daquela época." Hoje, há tanto clientes antigos quanto advogados, juízas e passantes mais jovens.

Endereço: r. Quintino Bocaiúva, 148, centro, tel. 0/xx/11/3242-5093
Especialista em Canetas
A placa não tem mais neon, mas continua lá, no alto da prateleira. O letreiro, "Posto Parker", é mais um dos objetos conservados pelos donos da Especialista em Canetas.

Fundada em 1951 pelos irmãos Hugo, Alfredo e Ito Leber, de origem suíça, a loja está igual a como era no passado, diz Inês Leber, 61, filha de Ito, que cuida do negócio com o sócio, Artur do Nascimento Silva, 70. Ele começou a trabalhar lá em 1956 e se tornou sócio dez anos depois.
A diferença é que as vitrines e as prateleiras de ferro, cobertas por papel contact para disfarçar o enferrujado do tempo, não exibem mais apenas canetas. Para sobreviver ao reinado da Bic, foi preciso diversificar o negócio, com produtos de tabacaria e de jogos. A loja ainda vende canetas, todas originais, afirma Inês.
A clientela, que já teve nomes ilustres como o governador Carvalho Pinto, hoje é formada principalmente por pessoas mais velhas. Médicos, advogados e bancários compram para presentear. Há também os colecionadores. A loja vende cargas, conserta e faz polimento no objeto.

Artur e Inês nunca pensaram em modernizar a loja porque os próprios clientes preferem assim. "Às vezes vem um antigo cliente com o filho ou até com o neto e fala: 'Eu consertava caneta aqui, a loja está igualzinha'. Tem criança que nem sabe o que é uma caneta tinteiro. A gente mostra e elas ficam deslumbradas", conta a proprietária.

Endereço: r. Boa Vista, 314, centro, tel. 0/xx/11/3107-3819
Chapelaria Plas
A loja é uma miragem na região do baixo Augusta, com suas boates de striptease. Abrir a porta de madeira e vidro da Chapelaria Plas é se sentir de novo no passado: o lugar está igualzinho desde 1954, quando o francês Maurice Plas, 83, abriu sua loja, exibindo a placa "Costureiros de Paris".
O dono é a personificação do lugar: barba longa, sorridente e emotivo, usa colete e boina. Tem forte sotaque e ainda fala frases em francês com os filhos, Robert, 45, e Maurice, 43, que também trabalham na loja.
Monsieur Plas conta que embarcou rumo ao Brasil, quando tinha 23 anos, fugindo dos comunistas. O irmão tinha vindo um ano antes. "Ele me mandou uma carta dizendo que aqui tinha sol, moças bonitas", lembra. Começou como alfaiate -profissão que ainda exerce, criando ternos e coletes sob medida.

Aderiu ao uso de chapéus para se proteger do sol por indicação médica e passou a fabricá-los por influência do ator Tarcísio Meira, seu cliente.
Maurice tinha voltado da Europa e estava na chapelaria usando um boné inglês, xadrez com pompom vermelho, quando o ator apareceu.
"Ele entrou na loja e disse: 'Esse boné vai ser meu'. Fiz um e botei na vitrine. A turma tirou sarro, dizia: 'Brasileiro não põe isso na cabeça'. Eu disse: 'Eu posso pôr isso na cabeça da turma'. E foi o que aconteceu", conta.

O proprietário se orgulha de nunca ter feito liquidação. "Quando você trabalha com arte, acho errado liquidar o que faz", defende.
É ele que ainda faz as boinas e os bonés de vários modelos, cores e materiais. Só os chapéus são comprados de fornecedores --o panamá, por exemplo, vem direto daquele país.

Robert diz que a clientela não é mais apenas gente de idade. "Há uns cinco, dez anos, mudou completamente. Muito jovem gosta de chapéu."
Os músicos Edgard Scandurra, Ed Motta, Cauby Peixoto e Nando Reis são alguns fregueses --este último começou a frequentar o lugar por influência do pai, que é cliente. Até a cantora australiana Kylie Minogue já apareceu por lá e levou um chapéu panamá. "Veio uma loirinha bonitinha, simpática. Depois fiquei sabendo que era ela", conta Robert.

Endereço: r. Augusta, 724, Consolação, 
tel. 0/xx/11/3257-9919
Colégio Rodrigues Alves
Uma joia na avenida Paulista coberta pelo descuido e pelo vandalismo. Assim era o colégio Rodrigues Alves antes de ser restaurado, em 2006. A fachada amarela estava com a pintura desgastada. O prédio sofria com vazamentos, rachaduras e infiltrações.

Hoje, os mais de 2.000 alunos que usam seu espaço têm o privilégio de estudar num edifício construído por Ramos de Azevedo em 1919. As escadas que eles descem correndo, de madeira maciça, foram restauradas, assim como o piso e as janelas. Uma canaleta de drenagem reduziu o problema de umidade, a fachada foi recuperada e as cores originais, devolvidas às paredes --foi preciso importar a tinta.
Também se recuperaram as pinturas decorativas, descobertas debaixo de várias camadas de tinta antiga. "Foi um trabalho minucioso e muito bonito", lembra Lúcia de Oliveira, 56, funcionária da secretaria e zeladora da escola na época. Ela morava em uma casa anexa, com pinheiros centenários e passarinhos, que foi demolida.

Hoje, o colégio é bastante procurado por causa da localização central. Muitos alunos são filhos de pessoas que trabalham na região da Paulista, nos hospitais do entorno, como domésticas ou zeladores, por exemplo. "É uma escola de passagem. Os alunos vêm de toda a cidade, até de Guarulhos, Itapevi", diz José Evangelista Gabriel, 64, diretor substituto.

Endereço: av. Paulista, 227, Cerqueira César
Trentini
O lugar é pequeno e escondido: uma salinha no sexto andar de um edifício no centro. Mas é lá que Célio Rui Biffi, 59, guarda um tesouro.
São câmeras de diversas épocas, ferramentas usadas antigamente para consertá-las e rolos de filmes de formatos variados. Há, por exemplo, duas máquinas alemãs, de madeira, das décadas de 20 e 30, que ainda eram de chapa --uma placa que fazia as vezes de filme.
A Trentini & Cia. Limitada foi fundada em 1941 por um italiano e já funcionou em outros três endereços no centro. O pai de Célio entrou para a sociedade em 1970.
Os quase dez funcionários da época se foram, e hoje é só ele que conserta as máquinas, analógicas e digitais -estas últimas "muito mais frágeis e suscetíveis a defeitos".

Foram elas que tiraram um pouco do "romantismo" que Célio via em fotografar. "Existe a praticidade, mas acho as fotos de câmeras com filme superiores." Ele tem uma digital, mas ainda conserva sua Olympus Trip 35, que, na década de 70, era "igual Volks, todo mundo tinha".

Para fazer seu trabalho, Célio usa uma mesa de relojoeiro dos anos 40. Ele também guarda documentos antigos da loja, já amarelados. "Essa memória tem que ser preservada."

Endereço: r. da Quitanda, 113, 6º andar, sala 67, centro, tel. 0/xx11/3242-3801
Botequim do Hugo
O cliente pede para o dono do bar: "Liga a internet aí, Hugo!". A rede wi-fi, em teste, é o único traço de modernidade no local. As paredes e as prateleiras de pinho de riga são pequenas para tantas miudezas espalhadas ali.

Localizado numa casa antiga, deslocada em meio aos prédios do Itaim Bibi, o Botequim do Hugo vive cheio. O público inclui advogados, políticos e cantores, mas também pedreiros e catadores de papel. Eles vão em busca da cerveja gelada, de quitutes simples como o "buraco quente" (pão francês sem miolo recheado de carne moída) e do ambiente caseiro. "O bar é pequeno e os clientes fazem amizade fácil", diz Hugo Cabral Filho, 51.
Filho do Hugo que deu nome ao local, ele toca, com a mulher, a irmã e a mãe, o comércio que existe desde 1927. No início, funcionava ali o Empório Cabral, mais conhecido como a vendinha do seu Marcelino --era assim que se chamava seu avô.
Dizer que Hugo foi criado naquele estabelecimento não é força de expressão: a casa dos pais dele fica atrás do bar e tem pés de goiaba, umbu, romã e lichia. Hugo criou ali os três filhos e ainda vive no local. Quando o bar fica cheio, tira os carros da garagem para colocar mais mesas.
Sua mãe, Francisca, ainda tempera a carne e prepara a pimenta, aos 85 anos. Hugo diz que já tentaram comprar a casa. "Não vendo. Imagina quanta gente nasceu, brincou, cantou parabéns, chorou aqui."

Em 1986, Hugo tentou modernizar o local, mas alguns frequentadores o convenceram a deixar tudo como era. Hugo não só atendeu aos pedidos como encheu o local de objetos antigos: garrafas, relógios, pilão, máquina de escrever, cinzeiros, coisas obtidas com catadores.

A sensação de estar lá foi bem descrita por uma cliente mexicana, como conta Hugo. "Ela perguntou: 'Você já tomou cerveja num museu? Não? Pois eu estou tomando'."

Endereço: r. Pedroso Alvarenga, 1.014, Itaim Bibi, tel. 0/xx/11/3079-6090

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