Código de Processo Civil, que vige entre nós há um mês, traz uma
alteração significativa na dinâmica probatória, que impacta as partes,
tanto na atuação processual, quanto nas suas relações extrajudiciais.
Possibilitou-se ao juiz dinamizar [1] o ônus da prova (artigo 373),
redistribuindo-o entre as partes [2], pelo que em todo processo as
partes serão confrontadas com a pergunta que abre o presente texto: quem
deve provar o quê?
Mais que isso, pelo novo paradigma estabelecido pelo artigo 373, em
suas relações privadas, as partes deverão reorientar suas respectivas
condutas, mormente probatórias, na medida em que potencialmente, em
futuro processo, poderão ser chamadas a provar fatos relacionados à
parte adversa.
Em princípio, as partes apresentam no processo determinadas
proposições de fato, hipóteses de descrição da realidade, sobre as quais
seus esforços probatórios recaem. Ora, as proposições de fato
normalmente são controversas, objeto de discussão pelas partes, pelo que
não passam de esboços caricaturais.
Contudo, com base em tais proposições é que a sorte da pretensão será
decidida, via de regra pelo êxito da parte no comprovar suas
assertivas, permitindo que o juiz aplique a norma ao caso concreto. Por
aí já se depreende a importância da prova para o processo, na medida em
que a demonstração das proposições fáticas, mediante a prova, condiciona
a atividade jurisdicional [3].
Assim, as provas oxigenam o processo. O processo não tem como
prescindir do mecanismo estruturado para absorção das provas, a fim de
que as proposições de fato sejam oxigenadas pela comprovação, permitindo
a melhor prestação da tutela jurisdicional.
Até por isso que boa parte da estruturação processual é construída considerando a (des)necessidade da produção probatória.
O procedimento é ritualmente abreviado quando presente pretensão que
não dependa da produção probatória (artigos 355 e 356). Exigências
probatórias possibilitam a colheita de provas de forma antecipada,
mediante procedimento específico (artigo 381 e seguintes). Ademais, a
dita fase postulatória do processo, que serve também para depuração das
proposições fáticas apresentadas pelas partes, é sequenciada por uma
etapa destinada à preparação do início da instrução do processo,
propriamente o seu saneamento e sua organização (artigo 357). Ainda se
estrutura fase processual própria, na qual os esforços são concentrados
para a produção de provas (artigo 358 e seguintes).
Portanto, claramente as provas, a necessidade de contar com elas,
condicionam a disciplina processual, bem como a atividades das partes e
do juiz no processo. Como reconhecido há mais de dois séculos pela
doutrina processual, a arte do processo não é em substância senão a arte
de produzir as provas [4].
Ainda que assim o seja, no fim do dia, ao cabo do processo, por
diversas razões, podemos ter um estado de hipóxia processual, pois o
processo não restou oxigenado com as provas indispensáveis ao
julgamento.
Nada obstante, exige-se do juiz decisão, pelo que se estabelece o
ônus como critério normativo para solução, exatamente na situação em que
as provas faltem para o julgamento.
O ônus da prova enucleia uma regra de juízo que visa estabelecer a
resposta que será dada ao processo [5], na situação em que não aportaram
provas a permitir o julgamento pelo juiz [6].
Mas não só.
Ainda que sejam certeiras as advertências relativamente à feição
subjetiva do ônus da prova [7], indiscutivelmente que as partes têm
presente o ônus da prova, inclusive fora do processo, nas suas
diferentes relações e arranjos, especificamente quanto às provas que
necessitam preconstituir para a eventualidade de uma futura, mesmo que
remota, discussão.
Assim, as partes tomam por base o ônus da prova na avaliação sobre as
possibilidades de ingressarem com a demanda e demonstrarem efetivamente
suas proposições de fato.
Ainda durante o processo, as partes, cônscias da regra do ônus da
prova, definem os meios de prova que empregarão. O juiz também, em certa
medida, tem em conta a oneração das partes ao avaliar a relevância das
provas requeridas, em eventual qualificação das diligências como inúteis
ou meramente protelatórias (artigo 370).
Portanto, a regra do ônus da prova tem uma eficácia processual
transcendente, não estando meramente confinada à fase final de
julgamento, como regra de resolução processual. Como dito, com base
nela, quando menos, as partes ordenam sua conduta processual, pautam sua
atuação probatória.
Pois bem, ainda que o Código tenha mantido como regra geral a
distribuição estática do ônus da prova (artigo 373) [8], abriu-se a
possibilidade ao juiz, em toda e qualquer demanda, de modular o ônus da
prova (artigo 373, § 1o). Basicamente, a ideia da modulação do ônus da prova é estimular a prova por aqueles em melhores condições de comprovar [9].
Transcreve-se para comprovação:
“Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§ 1o Nos casos previstos em lei ou diante
de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à
excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à
maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz
atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão
fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se
desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.”.
O dispositivo permite novo arranjo do ônus da prova por decisão do juiz (ope iudicis), afastando, episodicamente, a distribuição legal (ope legis),
quando a produção de determinada prova para uma das partes se faça
impossível, excessivamente difícil ou em virtude da maior facilidade de
obtenção da prova do fato contrário pela parte adversa.
Como é intuitivo, em tais situações, a parte pode ter ampliado seu
campo probatório para horizontes não antevistos, uma vez que a
redistribuição do ônus da prova colocará sobre seus ombros potencial
resultado negativo da ausência de demonstração de determinada proposição
factual, que antes premia a parte adversa.
Ainda que a redistribuição do ônus da prova não sirva para premiar o
ócio, mas sim para premer contra omissão probatória, sua redistribuição
(modulação) no processo afeta a parte onerada, impondo-lhe atuação
processual no campo das provas não passível de ser divisada antes do
processo.
As partes que têm, pela própria tradição compartilhada pelo senso
comum, a perspectiva da necessidade de comprovação de suas alegações ou
acusações, são potencialmente surpreendidas durante o processo com a
necessidade de comprovar questões relacionadas às acusações da parte
contrária [10].
É de se dar relevo ainda que tais decisões sobre a modulação do ônus
da prova tendem a ser intensificadas. Isso porque, a modulação do ônus
da prova ocorrerá na fase de saneamento e organização do processo. O
artigo 357 estabelece um roteiro a ser observado pelo juiz em tal fase,
sendo que a redistribuição do ônus da prova é tópico desse programa
(roteiro) normativo, pelo que o ordenamento processual estimula seu
exame, decisão explícita sobre o tema [11].
Nesta medida, a existência da regra geral do ônus da prova perde em
muito do seu caráter pedagógico pré-processual, como premonição às
partes sobre potencial resultado da demanda.
As partes e os respectivos advogados, frente às novas possibilidades
de atribuição do ônus da prova, têm que imediatamente reorientar suas
estratégias probatórias, inclusive pré-processuais, a fim de se preparar
para eventualmente comprovarem não são só suas assertivas, mas também
fatos relacionados à parte adversa.
Logo, na dúvida sobre quem deve provar o que, impõe se precaver quanto a possibilidade de tudo ter que comprovar.
——————————————–
[1] Não se trata bem de dinamização do
ônus, pois, redistribuído que seja, o mesmo volta a ser estático em
nova conformação. A ideia subjacente ao tema é a possibilidade do juiz
modular o ônus da prova de acordo com a situação das partes frente às
provas necessárias para instrução do processo, não ficando estritamente
vinculado à distribuição apriorística estabelecida na cabeça do artigo
373.
[2] O tema restou difundido pela
doutrina processual Argentina, identificando-se em JORGE PEYRANO o maior
entusiasta, ainda que lá seja objeto de bastante discussão: “En tren
de identificar la categoría de las ‘cargas probatorias dinámicas’,
hemos visualizado – entre otras – como formando parte de la misma a
aquélla según la cual se incumbe la carga probatoria a quien – por las
circunstancias del caso y sin que interese que se desempeñe como actora o
demandada – se encuentre en mejores condiciones para producir la
probanza respectiva.” (PEYRANO, Jorge W. Aspectos procesales de la
responsabilidad profesional, in Las Responsabilidades Profesionales –
Libro al Dr. Luis O. Andorno, coord. Augusto M. Morello e outros, La
Plata: LEP, 1992, p. 263).
[3] Obviamente, diz-se isso em
reforçado exercício de simplificação, na medida em que a atividade
jurisdicional, seja na reconstrução da norma jurídica, seja na sua
interconexão com os fatos, é bem mais complexa. De toda forma, para fins
do texto, o que nos interessa é chamar a atenção da prova em si como
necessária para a prestação da tutela jurisdicional.
[4] BENTHAM, Jeremías. Tratado de las
pruebas judiciais: obra extraída de los manuscritos de M. Jeremías
Bentham. Escrita em francês por Estevam Dumont. Traduzida ao castellano
por C. M. V. Paris: Bossange Fréres, 1825. Tomo I, p. 4.
[5] Como consignamos em obra a ser publicada: “Na
regra do ônus da prova assume maior relevo sua característica como
regra de julgamento (face objetiva). Como não é dado ao juiz jurar pela
obscuridade da causa (sibi non liquere — julgamento non liquet), o
ordenamento lhe dá a tábua de salvação na hipótese da dúvida. A expressão
non liquet, suas iniciais N.L., era usada pelos juízes romanos, ao
tempo da República, para se demitir do julgamento de questão sobre a
qual não estavam suficientemente esclarecidos. Ao votarem, consignavam
em pequenas tábuas que traziam tais siglas (N.L.), ou as letras A
(absolvo) C (condeno). Atualmente, pelo inevitabilidade da prestação da
tutela jurisdicional (artigo 5o, inciso XXXV,
da Constituição), o juiz não pode pronunciar o non liquet. O dispositivo
em comento objetiva exatamente afastar tal possibilidade, no que
estabelece a diretriz a ser observada pelo magistrado quando presente
dúvida insuperável sobre as proposições afirmadas. Presente o estado de
incerteza, o conteúdo da decisão a ser prolatada é imposto pela ordem
jurídica. Tal regra de julgamento possibilita o juízo afirmativo ou
negativo sobre a pretensão, na situação de hipóxia probatória.”
(GAJARDONI, Fernando da Fonseca; Dellore, Luiz; ROQUE, André
Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento
e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. São Paulo:
Método, 2016).
[6] “(…) é uma necessidade evidente
que a lei tenha algum dispositivo acerca do que deve ser feito quando,
entre duas partes e com referência a uma específica norma do direito,
não for estabelecida a aplicabilidade ou não da pertinente ‘consequência
jurídica’ (…)”. (MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do
direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 55)
[7] Rejeita-se existência dessa feição
subjetiva do ônus da prova com base na comunhão das provas no processo,
a existência de poderes instrutórios do juiz e o julgamento com base na
persuasão racional. Mesmo porque, a atividade probatória das partes só
mediatamente tem reflexo no resultado do processo (MICHELI, Gian
Antonio. La carga de la prueba. Traducida por Santiago Sentís Melendo.
Bogotá: Editoral Temis, 1989. p. 96). Assim, em tal visão, o ônus
subjetivo da prova só teria relevância prática, mais psicológica do que
jurídica (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Julgamento e ônus da prova. Tema
de direito processual. 2a Série. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 75), ou,
ainda, seria característica própria de processos dominados pelo
princípio dispositivo. Vale lembrar que PONTES DE MIRANDA, ainda que
acentuando a face objetiva (MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de
Processo Civil: tomo IV (arts. 282-443). 3. ed. rev. e aument.
Atualização legislativa de Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense,
1996. p. 270), não deixou de reconhecer que o ônus da prova principia
antes de qualquer demanda, preexistindo a ela (MIRANDA, Pontes.
Comentários ao Código de Processo Civil: tomo IV (arts. 282-443). 3. ed.
rev. e aument. Atualização legislativa de Sérgio Bermudes. Rio de
Janeiro: Forense, 1996. p. 254).
[8] Ao
autor compete a prova dos fatos constitutivos do seu direito, enquanto
ao réu a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do
direito do autor.
[9] BENTHAM já propugnava que o
encargo da prova deveria recair sobre os ombros de quem pudesse
realizá-la com menores inconvenientes (BENTHAM, op. cit., Tomo III, p.
151)
[10] É diferente a situação nas
relações de consumo, de trabalho ou envolvendo responsabilidade
profissional, nas quais já preponderavam regulamentações estabelecendo
deveres de documentação, comprovação e etc., próprios e inerentes ao
exercício da atividade comercial. Nessa medida, por exemplo, o impacto
da inversão do ônus da prova no Código de Proteção e Defesa ao
Consumidor na realidade foi menor do que será, imagina-se, a aplicação
do artigo 373, § 1o.
[11] Na
nossa visão, seja a decisão que redistribui, seja aquela que rejeita o
pedido de redistribuição do ônus da prova, são suscetíveis de ataque
pelo agravo de instrumento. Isso porque, da conjugação do caput
do artigo 1.015 com o inciso VIII, temos capitulada como hipótese de
agravo as “decisões que versarem sobre” “redistribuição do ônus da prova
nos termos do art. 373, § 1o”. Logo, tanto a decisão que
defere, quanto que indefere a modulação do ônus da prova, versam
efetivamente sobre o tema da redistribuição. Sobre o tema, vide também
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; Dellore, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos;
OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Processo de conhecimento e
cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método,
2016.
Comentários
Postar um comentário