Uma nova abordagem da garantia fiduciária no processo de recuperação judicial, por Roberta Machado Branco Ramos
Após anos de debates entre a comunidade empresarial brasileira, juristas, representantes de instituições financeiras e governo, aprovou-se a lei 11.101, de 9/2/05, em vigência no ordenamento jurídico brasileiro há mais de 10 anos.
O propósito da nova lei foi criar mecanismos mais eficientes para que o empresário, podendo fazer uso de um conjunto de soluções administrativas, financeiras, de reorganização societária e pagamentos, consiga, efetivamente, promover o saneamento do estado de crise econômico e/ou financeira.
Neste ideal, criou-se o procedimento de recuperação judicial que proporciona ao empresário devedor mecanismos de superação da situação de crise econômico-financeira fundado nos princípios da preservação da empresa, do desenvolvimento de sua função social e o estímulo à atividade econômica, permitindo, assim, a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores.
Para tanto, o legislador confere amplitude e liberdade de opção ao devedor estabelecendo no artigo 50 da lei 11.101/05, de modo não taxativo, diversas soluções que poderão ser adotadas para viabilizar o saneamento das dívidas, englobando-se, dentre outros, as hipóteses de reorganização societária, parcelamentos, redução de juros, alteração do controle societário, constituição de sociedade de credores, venda parcial de bens, etc., para que, uma vez saneada, a empresa possa continuar a produção de bens e serviços, geração de riquezas e o fomento da economia brasileira.
Questiona-se, porém, como salvaguardar o direito de credores titulares de contratos com garantia real, que, enfim, não estão sujeitos ao plano de recuperação judicial, não sofrendo, via de consequência, abalo em suas garantias. Inserem-se aqui os contratos de alienação fiduciária em garantia.
Destarte, cuida-se da hipótese em que o devedor em recuperação judicial é o comprador de coisa móvel ainda não quitada e que apenas detém a posse do bem (direita ou indireta) mas não seu domínio.
A alienação fiduciária em garantia se caracteriza com a transferência pelo devedor ao credor, da posse indireta da coisa móvel. O credor retém a posse indireta e o domínio resolúvel sobre a coisa. O devedor figura-se na qualidade de possuidor direto e depositário do bem móvel, assumindo todas as responsabilidades e encargos pela sua guarda. Portanto, o definitivo domínio apenas poderá ser exercido quando cumprida a condição resolutiva do pagamento, por isso se diz que o domínio é resolúvel.
Não ocorrendo o pagamento, todavia, o credor fiduciário não se sujeita ao plano de recuperação judicial e tampouco ao rateio coletivo da massa falida se acaso o devedor tiver sua falência decretada, tendo a prerrogativa de pedir a restituição do bem. Tem-se, pois, que a recuperação não suprime as garantias reais decorrentes de contratos dessa natureza.
Esta solução se amolda ao próprio instituto da alienação fiduciária em garantia cujos bens não podem integrar o acervo patrimonial do devedor, exatamente porque não são de sua propriedade, devendo ser restituídos ao proprietário fiduciário quando assim requerido.
Em que pese tenham contratos dessa natureza a força da garantia sobre o próprio bem, instaura-se verdadeiro conflito de interesses e direitos quando o devedor em recuperação judicial precisa dar continuidade ao exercício das atividades empresárias, tornando-se imprescindível a utilização de bens essenciais à atividade, dentre eles, eventualmente, bens adquiridos por alienação fiduciária.
Isto porque a recuperação judicial exige da empresa determinação para o efetivo cumprimento do plano, sua correção quando assim se tornar necessário e o comprometimento para com um regime jurídico diferenciado, assim concebido como verdadeira oportunidade de soerguimento que lhe é assegurada por lei. Exatamente para que consiga sair da crise, é essencial que a empresa não tenha abalada sua capacidade de produção, isto é, que tenha assegurado a continuidade das atividades empresárias sem grandes surpresas.
Neste ponto, cabe sopesar o conflito de interesses entre os pedidos de restituição de bens decorrentes de contratos de alienação fiduciária em garantia e a necessidade da empresa recuperanda em manter-se na posse do bem essencial à sua produção.
Com efeito, despachos que concedem medidas liminares de busca e apreensão de veículos ou maquinários em geral essenciais à atividade empresária, podem pôr em risco a continuidade da empresa, afetando o cumprimento do plano de recuperação judicial com risco de ser convolada a recuperação em falência, certamente, uma medida drástica e não esperada pelo devedor, pelos colaborados ou mesmo pelos credores.
Não se propõe o descumprimento de mandados de busca e apreensão, mas sim, um modo de reverter seus efeitos para permitir que a posse dos bens seja assegurada ao empresário devedor em recuperação judicial, justamente porque são bens essenciais à manutenção das atividades empresárias e da fonte produtora, notadamente quando já houve o cumprimento substancial do contrato. Cogita-se, portanto, a modificação nos efeitos da busca e apreensão.
Trata-se, pois, de situação que vem sendo enfrentada pelos Tribunais Superiores, admitindo-se que bens apreendidos em ação de busca e apreensão, quando essenciais à atividade empresária do devedor, possam ficar em sua posse enquanto tramitar o processo de recuperação judicial, fato que não enseja violação ao artigo 3º do decreto-lei 911/69.
Admite-se, portanto, que veículos ou maquinários indispensáveis ao funcionamento da empresa fiquem em depósito com o devedor fiduciário durante o trâmite da recuperação judicial, aplicando-se a ressalva final contida no § 3º do art. 49 da lei 11.101/05 justamente porque são bens essenciais ao desenvolvimento das atividades econômico-produtivas.
Nestes termos, por ser medida menos gravosa ao devedor além de conferir efetividade à recuperação judicial que, busca, ao final, promover meios eficazes de soerguimento do devedor, mantém-se a garantia de credores fiduciários limitando-se, porém, o exercício da posse assegurada à empresa recuperanda durante o processo de recuperação, sem que isso implique em prejuízo para o credor.
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