O
Ministério Público Federal em Minas Gerais ajuizou ação civil pública
contra o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste
de Minas (IFSEMG) acusando a instituição de ter sido omissa, ao longo
dos anos, em reprimir a prática de trotes estudantis em suas
dependências e pleiteando o pagamento de indenizações. O trote
estudantil, covarde e criminoso, não seria nenhuma novidade. Acontece
que, no caso, trata-se de jovens que ainda nem ingressaram na
Universidade. A escola oferecia alojamento estudantil, em regime de
internato, a mais de cem alunos matriculados em cursos técnicos da área
de ciências agrárias, para formação equivalente ao ensino médio. Seus
estudantes são, em sua maioria, adolescentes com idade entre 14 e 16
anos de idade.
A
humilhação causada aos novatos e abertamente praticada continua a
ocorrer a cada início de ano letivo. Nos cursos superiores, os veteranos
trogloditas demonstram uma incrível selvageria na recepção aos
calouros. Pergunto: até quando as autoridades continuarão omissas nessa
questão? Aliás, os próprios calouros, na maior parte dos casos, não
conhecem seus direitos; não sabem que poderiam simplesmente se escusar
de participar dos atos abusivos e chamar a polícia. Por isso, volto ao
tema mais uma vez, deixando consignados os direitos envolvidos e
lembrando que alguns atos estão tipificados como crimes. Abordo, também,
a responsabilidade das instituições de ensino, com base nas garantias
de proteção à saúde e segurança dos estudantes (consumidores) previstas
no Código de Defesa do Consumidor.
Como
já disse antes, o trote estudantil degradante, ao invés de integrar o
aluno recém-aprovado, sempre foi um modo fascista de receber aqueles que
ingressavam nas faculdades. Quando ingressei na Faculdade nos idos de
1976, nós estudantes já pensávamos que aquilo era um jeito muito
estranho de dar boas vindas. Não só eu, mas muitos de nós, achávamos uma
contradição os jovens ingressarem na faculdade - um restrito setor da
elite brasileira – e se mostrarem tão mal educados: ao invés de
agradecer ao privilégio e dar as boas vindas aos ingressantes, agiam
como bárbaros, arrogantes e sádicos. Os trotes eram generalizados, sendo
praticados em quase todas as escolas.
Felizmente,
isso mudou em parte: são muitas as escolas que não só proíbem os trotes
violentos, como vários Centros Acadêmicos (CAs), cônscios de suas
responsabilidades como guardiões dos direitos e das liberdades, também
os combatem. Muitas escolas e CAs, por exemplo, substituíram esse tipo
de delito pelos chamados "trotes solidários": organizam festas de
recepção, shows, teatros nos quais os calouros não só participam como
distribuem produtos alimentícios, medicamentos e roupas para serem
doados a Instituições de Caridade. Há escolas em que os veteranos montam
grupos de recepção para integrar os calouros na vida universitária,
mostrando o funcionamento efetivo do campus, o método de ensino, as condições reais de estudo, explicando as regras vigentes, etc. Isso é mesmo muito bom.
Todavia,
não só os trotes continuam como, pelo visto, existem também no ensino
médio, o que é assustador. Lembro que o trote violento – física, moral e
psicologicamente – caracteriza prática criminosa prevista em nossa
legislação penal. É possível também ao calouro-vítima buscar
ressarcimento na esfera civil. Vejamos.
Não
preciso, naturalmente, referir os casos-limite que ocasionaram mortes,
crimes graves e que, efetivamente, quando ocorrem, são investigados.
Citarei os demais casos que também são tipificados como crimes.
Cortar
o cabelo total ou parcialmente do calouro contra sua vontade
caracteriza crime de lesão corporal (art. 129 do Código Penal-CP). O
mesmo ocorre cortando-se a barba total ou parcialmente do calouro.
Humilhar
o calouro, ridicularizando-o publicamente, pintando seu corpo, fazendo
"cavalgada" (modo esdrúxulo do veterano sentar sobre o calouro de quatro
ao solo fingindo ser um cavalo, um jumento ou um burro), amarrá-lo,
fazê-lo engatinhar pelas ruas, fazê-los andar um colado no outro como
uma centopeia, e todos os outros métodos sádicos e degradantes
semelhantes são caracterizados como crime de injúria (Artigo 140 do CP).
Obrigar
o calouro a ingerir bebida alcoólica contra sua vontade é crime de
constrangimento ilegal (art. 146 do CP) e, se esse tipo de ação é
praticada por mais de três pessoas (como normalmente ocorre), o crime
passa a ser qualificado e sua pena aumentada. Se, por acaso, o calouro
resiste e não bebe, ainda assim está caracterizado o crime como
tentativa (art. 14, II do CP).
Haverá
outros crimes que podem ser praticados, além daqueles em que são
cometidos assassinatos. E, anoto, também, que os delitos podem ser
considerados em concurso, isto é, o veterano pode ser condenado como
incurso em mais de um crime simultaneamente.
Um
ponto merece destaque: o da participação das escolas. É incrível, mas
algumas instituições de ensino simplesmente não tratam dessa questão.
Agem como se não fosse problema delas, com a alegação de que o que
ocorre fora do campus não é de seu interesse e responsabilidade. Mas, não é bem assim.
Primeiramente,
anote-se que a obrigação moral é evidente. O trote só ocorre porque
existe a escola, os calouros e os veteranos. Depois, é possível sim
buscar responsabilizar a escola civilmente por faltar com seu dever de
vigilância. A responsabilidade é clara quando os trotes ocorrem nas
dependências e arredores das escolas (locais de entrada e saída, que
devem ser controlados e vigiados pelas instituições de ensino). É
verdade que quando o evento ocorre fora do campus, é mais
difícil responsabilizar a escola, mas não se deve esquecer que,
provavelmente, os calouros foram apanhados na porta ou dentro de seus
muros.
O
CDC, como adiantei, garante que os serviços colocados no mercado de
consumo (dentre os quais estão os educacionais em todos os níveis) não
podem acarretar riscos à saúde e segurança dos consumidores (art. 8º,
"caput"). Esses riscos podem estar relacionados à prestação direta do
serviço ou à sua omissão. Calouros sendo submetidos a atos vexatórios ou
violentos contra sua incolumidade física e/ou psíquica dentro das
dependências da escola implica clara responsabilidade por omissão. Do
mesmo modo, há omissão quando é permitido que os calouros sejam levados
(sequestrados) de dentro da escola, das portas ou imediações para que
sejam submetidos aos atos degradantes em outro lugar. Consigno também
que os danos físicos e/ou psicológicos sofridos pelos estudantes são
indenizáveis, respondendo a escola pelo defeito de sua prestação de
serviços de forma objetiva, com base no art. 14 do CDC.
Ademais,
é de se colocar que o mínimo que a instituição de ensino pode fazer é
proibir o trote e nos primeiros dias de aula distribuir avisos para os
calouros, dizendo como eles devem agir para se proteger dos atos
violentos praticados pelos veteranos. E a denúncia feita pelos calouros,
gerando punição administrativa dos veteranos com suspensões e até
expulsões, certamente, terá eficácia duradoura. A punição exemplar pode
refrear os ânimos animalescos dos veteranos no futuro.
Não
se deve esquecer que nem sempre os calouros querem participar desse tipo
de masoquismo explícito. É preciso oferecer a eles um meio de se
protegerem, assim como de falarem e serem ouvidos. Claro que, nesse
ponto, também, as autoridades policiais têm se omitido, uma vez que,
como disse, muitos trotes são feitos a céu aberto, em praça pública
(literalmente), ruas e avenidas.
Realmente,
assistindo às cenas, fica difícil acreditar que aqueles veteranos que
estudam em conhecidas escolas de Direito, medicina, sociologia,
engenharia, etc possam um dia exercer tais profissões com dignidade.
Começam muito mal sua vida acadêmica e social. São antes selvagens que
modernos estudantes universitários. É verdade que se trata de uma
minoria, aliás, talvez a mesma minoria que anos depois, no período da
formatura, faz os "botaforas"violentos.
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