Fundamentar a sério (e em descaso), por Henrique Napoleão Alves

Desde sua redação original, a Constituição prevê que as decisões judiciais devem ser fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX). Mas, o que faz com que uma decisão deva ser tida como fundamentada? Como identificar uma decisão mal fundamentada?
TRÊS PADRÕES DE JUSTIFICAÇÃO
Fundamentar é justificar. No contexto de uma pesquisa coletiva internacional sobre interpretação e justificação de decisões judiciais[1], os pesquisadores responsáveis pelo texto de sistematização dos dados propuseram a identificação de três padrões principais.
Elaborei a tabela abaixo para resumi-los:
CONSTITUIÇÃO E O PADRÃO COMPLEXO
Os direitos constitucionais ao contraditório e ao devido processo legal servem, dentre outras coisas, para garantir que as partes de um conflito judicializado possam participar da formação da decisão judicial.
Considere um caso concreto em que as partes apresentam argumentos conflitantes. Nesta situação, apenas uma decisão de padrão complexo realiza o direito das partes de participar da formação da decisão judicial.
Isso se dá por uma razão simples: todos os demais tipos de decisão não demonstram que levaram em conta os argumentos da parte vencida.
Não basta que o magistrado da decisão básica ou da decisão cumulativa diga que levou em conta os argumentos da parte vencida. Ele precisa demonstrar isso, pois o art. 93, IX, da Constituição também exige que as decisões sejam públicas. A linha de raciocínio que levou o magistrado a decidir de uma, e não de outra maneira precisa ser publicizada.
Num sentido semelhante, o Pleno do Supremo Tribunal Federal[2] afirmou que o magistrado deve cumprir integralmente o “direito-dever fundamental de as decisões serem fundamentadas”, cujo conteúdo abrange o direito das partes de ver seus argumentos considerados.
Espere um pouco. Confira o número e referência do julgado na nota de rodapé [2]. Não o deixe escapar! Guarde-o com carinho. Vai por mim: mais cedo ou mais tarde, você vai precisar usá-lo e, francamente, não existem muitos como ele por aí.
UMA TRADIÇÃO DE DESCASO COM O DEVER DE FUNDAMENTAR
No Brasil, exceções à parte, a verdade é que há uma tradição de descaso com a fundamentação das decisões judiciais. Prova disso é a frequência com que as decisões ignoram os argumentos trazidos pelas partes, especialmente pela parte vencida.
Todo bom advogado passa (muitas vezes) por algo semelhante ao seguinte roteiro:
  1. Pesquisa profunda e desenvolvimento de diferentes argumentos a favor de seu cliente.
  2. Decisão judicial que não leva em conta vários desses argumentos.
  3. Apresentação de embargos declaratórios pedindo ao magistrado que examine os argumentos, de modo a sanar as omissões do julgado.
  4. Resposta sumária afirmando que “o magistrado não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos suscitados pelas partes”; ou que “os embargos são meramente protelatórios”.
O desfecho desse roteiro é juridicamente inaceitável. O magistrado deve respeito aos argumentos apresentados pelas partes. Além disso, dizer que os embargos são “protelatórios” sem justificar a assertiva é decidir sem fundamentação alguma. Não é nem uma decisão mal fundamentada. A decisão mal fundamentada ainda tem, pelo menos, algum fundamento (ruim). É o pior dos cenários.
O OUTRO LADO
Colegas e amigos da magistratura costumam levantar os seguintes contrapontos: (1) o número de processos torna impossível que os argumentos sejam todos analisados; (2) as próprias peças são, em muitos casos, confusas e mal redigidas.
Quanto ao ponto (1), o problema do número elevado de processos pode ser combatido de várias formas. O rebaixamento da qualidade da decisão é provavelmente a pior delas.
O ponto (2) é um problema sério para a advocacia e para a solução de controvérsias, mas nem tanto para a justificação de decisões: o magistrado pode dispensar, fundamentadamente, tudo aquilo que sequer se configura como argumento.
O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O art. 489 do novo Código de Processo Civil pode ser interpretado como uma reação à tradição de descaso mencionada acima. Seu conteúdo reforça a conclusão de que as partes têm um direito à decisão de padrão complexo. Neste sentido, o dispositivo afirma os fundamentos como elemento essencial da decisão e não considera fundamentada a decisão, v.g.,
* que se limita à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
* que emprega conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência;
* que não enfrenta todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
* que se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.
No entanto, embora a mudança legislativa seja importante, ela não é suficiente. Uma coisa é a lei, outra coisa é a maneira como ela será vivida, aplicada, reaplicada, interpretada e reinterpretada pela comunidade de juristas.
A tradição de descaso com a fundamentação das decisões tem raízes profundas na prática e no imaginário judicial e, por isso, corre o risco de sobreviver mesmo com um novo código. Já há sinais disso, inclusive por parte do próprio Superior Tribunal de Justiça.
Mesmo levando em conta o art. 489 do CPC, o STJ reafirmou a tese de que o julgador “não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”. O que conta como “motivo suficiente”? Como demonstrar e fundamentar sua suficiência? Como fazer isso sem desrespeitar o trabalho das partes?
O Brasil não é para principiantes.

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