A comprovação da insuficiência de recursos, por Élisson Miessa

A necessidade de comprovação da insuficiência de recursos para a concessão do benefício da justiça gratuita é tema que evoluiu consideravelmente no direito brasileiro.
Com a chegada da Lei º 13.467/17 a matéria é novamente provocada, motivo pelo qual faremos uma análise prévia do histórico dessa evolução, antes de verificarmos efetivamente a mudança ocorrida com referida lei, iniciando pelo Código de Processo Civil de 1939.
1. Comprovação pela pessoa física
O referido CPC de 1939 possuía um capítulo próprio para tratar do benefício da justiça gratuita. Em seu art. 72 impunha que a parte que pretendia a concessão do benefício deveria mencionar, na petição, o rendimento ou vencimentos que percebia e os seus encargos pessoais e de família, ressalvando que quem prestasse declarações falsas, seria punido na forma da lei penal.
Na mesma diretriz, a Lei nº 1.060/50, ao regulamentar o benefício da justiça gratuita, incumbiu à parte que almejava gozar do benefício o dever de mencionar na petição o rendimento ou vencimento que percebia e os encargos próprios e os da sua família.
Nessa época, a petição deveria ser instruída por um atestado que constasse ser o requerente necessitado, não podendo pagar as despesas do processo. Este atestado era expedido pela autoridade policial ou pelo prefeito municipal. Nas capitais dos Estados e no Distrito Federal, o atestado da competência do prefeito poderia ser expedido por autoridade expressamente designada por ele.
Em 1970, a Lei nº 5.584 – embora tratando de contexto mais amplo, ou seja, da assistência jurídica, em seu art. 14, §§ 2º e 3º, passou a declinar que a situação econômica do trabalhador seria comprovada por meio de atestado fornecido pelo Ministério do Trabalho e Emprego e, em sua falta, pelo Delegado de Polícia. Além disso, expôs que a assistência seria devida a todo aquele que percebesse salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal, ficando assegurado igual benefício ao trabalhador de maior salário, uma vez provado que sua situação econômica não lhe permite demandar, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.
Ato contínuo, a Lei nº 6.654/79 incluiu o § 3º, no art. 4º, da Lei nº 1.060/50, descrevendo que a apresentação da carteira de trabalho, onde o juiz verificasse a necessidade da parte, substituiria os referidos atestados.
No mesmo ano, a Lei nº 6.707/79 alterou o § 1º da Lei nº 1.060/50, declinando que o atestado seria expedido pela autoridade policial ou pelo prefeito municipal, sendo dispensado à vista de contrato de trabalho comprobatório de que o trabalhador percebesse salários igual ou inferior ao dobro do mínimo legal regional.
Portanto, até esse momento, no processo do trabalho, exigia-se a comprovação da insuficiência de recursos por dois meios:
  • atestado de pobreza expedido pelo Ministério do Trabalho e Emprego e, em sua falta, pelo Delegado de Polícia, sendo admitido ainda o expedido pela autoridade policial ou pelo prefeito municipal;
  • contrato de trabalho que demonstrasse o recebimento de salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal.
Em 1986 houve verdadeira revolução nesse quadro histórico.
A Lei nº 7.510/86 modificou o art. 4º da Lei nº 1.060/50 passando a permitir a concessão do benefício da justiça gratuita mediante simples declaração de que o requerente não estava em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família, presumindo-se verdadeira a declaração, até prova em contrário (§ 1º).
Afastou-se, pois, a necessidade de atestado de pobreza expedido por autoridade pública, exigindo simples declaração no sentido de que não tem condições de arcar com as despesas do processo.
Em seguida foi promulgada a Constituição Federal de 1988 que, exaltando os direitos fundamentais, impõe que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (art. 5º, LXXIV).
Poder-se-ia entender que a Constituição Federal retrocedeu, exigindo a comprovação da insuficiência de recurso. No entanto, acompanhando as lúcidas lições de Fredie Didier Jr e Rafael Alexandria de Oliveira
(…) não se poderia admitir que justamente a Constituição Federal de 1988, de bases eminentemente voltadas para o social, pudesse incorrer em tamanho retrocesso. A se entender assim, ter-se-ia que voltar ao regramento anterior a 1950, exigindo-se dos requerentes a prova da sua situação de insuficiência de recursos, com inevitável restrição ao amplo e irrestrito acesso à justiça, consagrado no inciso XXXV do mesmo art. 5º da Constituição Federal. Não é o que entendemos ter ocorrido. [1]
Nesse contexto e já embasado no art. 5º, incisos XXXV e LXXIV, da CF/88, o C. TST reconheceu a revogação tácita dos §§ 2º e 3º do art. 14 da Lei nº 5584/70, razão pela qual passou a aplicar integralmente o disposto no art. 4º da Lei 1.060/50, ou seja, dispensou a exigência de atestado para demonstrar a situação econômica da parte, bastando uma simples declaração feita pela parte ou pelo seu  procurador (OJ nº 304 da SDI-I atualmente cancelada em razão da aglutinação ao item I da Súmula 463 do TST).
No mesmo sentido, o legislador em 2002, por meio da Lei nº 10.537/02 incluiu o § 3º, no art. 790 da CLT, viabilizando a concessão do benefício da justiça gratuita àquele que declarasse que não tinha condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família. Além disso e fincado na cultura laboral iniciada pela Lei 5.584/70, também permitiu a concessão do benefício àqueles que percebessem salário igual ou superior ao dobro do mínimo legal.
De qualquer maneira, o dispositivo autorizou critérios alternativos:
  • simples declaração de insuficiência de recursos; ou
  • recebimento de salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal.
Seguindo a mesma tendência de facilitar o acesso à justiça, o Novo CPC declina que a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural será considerada como verdadeira (art. 99, § 3º), permitindo que o pedido possa ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso (art. 99, caput) e, se o pedido for superveniente à primeira manifestação da parte na instância, por simples petição (art. 99, § 1º). Apenas passou a estabelecer que, caso a alegação seja feita pelo advogado, este deve ter poderes específicos para tanto (NCPC, art. 105).
Desse modo, o C. TST permitiu que a declaração de insuficiência econômica fosse feita por simples afirmação do declarante ou do seu advogado, desde que, neste último caso, esteja munido de procuração com poderes específicos para esse fim (Súmula nº 463, I, do TST).
Essa evolução histórica é de extrema relevância para que se possa entender e interpretar adequadamente o art. 790, §§ 3º e 4º, da CLT, inseridos pela Lei nº 13.467/17, os quais vaticinam:
§ 3º É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
§ 4º O benefício da justiça gratuita será concedido à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo. (Grifo nosso)
Em uma análise literal desses dispositivos, poder-se-ia chegar à conclusão de que a partir do advento da referida lei, no processo do trabalho, somente na hipótese de o requerente receber salário igual ou inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social haverá presunção de insuficiência de recursos. Nos demais casos, a declaração de insuficiência de recursos deixa de ter presunção de veracidade, impondo sua comprovação.
Essa interpretação remonta a período anterior ao CPC de 1939 ou, no máximo, no início da vigência deste Código quando o trabalhador deveria mencionar na petição o rendimento ou o vencimento que percebia e os encargos próprios e de sua família.
Não me parece que o legislador tenha tido essa intenção, vez que, tratando de lei que buscou modernizar as relações de trabalho, não estaria pensando em retornar a um contexto histórico da década de 30.
Aliás, essa discussão já foi levantada, como dissemos anteriormente, na época da promulgação da Constituição Federal de 1988, quando o art. 5º, LXXIV, passou a exigir a comprovação da insuficiência de recursos.
Tal como já interpretada a Constituição Federal, essa comprovação não impõe ao necessitado o ônus de provar sua incapacidade financeira, sob pena de inevitável restrição do acesso à justiça, consagrado como direito fundamental (CF/88, art. 5º, XXXV).
É por isso que o NCPC cria a presunção legal de que se presume “verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural” (art. 99, § 3º).
Ora, se no processo civil existe referida presunção, com maior razão há de incidir no processo do trabalho, em que é a hipossuficiência do trabalhador é patente, sendo decorrência lógica do próprio direito do trabalho.
Desse modo, pensamos ser inevitável a aplicação supletiva do Código de Processo Civil (art. 15), incidindo-se assim o art. 99, § 3º, do NCPC e, consequentemente, atraindo para o processo laboral a presunção legal de veracidade da declaração de insuficiência de recursos feita pela pessoa física[2].
Ainda que não se concorde em aplicar ao processo do trabalho a presunção legal do art. 99, § 3º, do NCPC, é sabido que a presunção também pode ser judicial. Nas palavras do doutrinador Daniel Amorim Assumpção Neves:
Presunção legal é aquela estabelecida expressamente em lei, sendo tarefa do legislador a indicação de correspondência entre o fato indiciário e o fato presumido, podendo ser a presunção relativa ou absoluta. Presunção judicial é aquela realizada pelo juiz no caso concreto, com a utilização das máximas de experiência, permitindo-se a conclusão de ocorrência ou existência de um fato não provado em razão da prova do fato indiciário, fundado naquilo que costuma logicamente ocorrer. (Grifos no original)
Com efeito, não se pode negar que, ordinariamente, o trabalhador não possui condições financeiras de arcar com outras despesas senão as de seu próprio sustento e de sua família, incidindo a presunção judicial.
Desse modo, a simples declaração de insuficiência de recursos feita pela pessoa física é eficaz para incidir a presunção legal ou judicial.
Assim, sendo certo que os fatos presumidos independem de prova (NCPC, art. 374, IV), incumbe à parte contrária do ônus de desconstituir a declaração de insuficiência de recursos.
Em resumo, com a chegada na Lei nº 13.467/17, nada muda, mantendo-se as mesmas diretrizes anteriores, isto é, a declaração de insuficiência econômica é presumida verdadeira podendo ser feita por simples afirmação do declarante ou do seu advogado, desde que munido de procuração com poderes específicos para esse fim (Súmula nº 463, I, do TST).
Por fim, é importante destacar o juiz somente pode indeferir o pedido de concessão do benefício da justiça gratuita se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos (NCPC, art. 99, § 2º).
2. Comprovação pela pessoa jurídica
As pessoas jurídicas, especialmente as sociedades empresarias, exercem atividade econômica almejando, dentre outros objetivos, a aferição de lucros.
Desse modo e diferentemente da pessoa física, ela, como regra, tem capacidade econômica.
No entanto, por vezes, a pessoa jurídica pode não ter recursos financeiros, o que levou a doutrina e a jurisprudência a permitirem a concessão do benefício da justiça gratuita a tais pessoas, com base no acesso à justiça, bem como na gratuidade de justiça, descritos, respectivamente, nos incisos XXXV e LXXIV, da CF/88.
De qualquer maneira, ordinariamente, a pessoa jurídica tem condições de arcar com as despesas do processo, razão pela qual a simples declaração de insuficiência de recursos não gera presunção legal ou judicial de veracidade, dependendo de demonstração cabal da fragilidade econômica. Tanto é assim que o próprio NCPC faz menção expressa de que a presunção de veracidade apenas ocorre quando se tratar exclusivamente de pessoa natural (art. 99, §3).
Nesse contexto, o C. TST, acompanhando o já defendíamos[3], a partir da Resolução nº 219/2017, passou a declinar na Súmula nº 463 o que segue:
Súmula nº 463 do TST. Assistência judiciária gratuita. Comprovação
I – A partir de 26.06.2017, para a concessão da assistência judiciária gratuita à pessoa natural, basta a declaração de hipossuficiência econômica firmada pela parte ou por seu advogado, desde que munido de procuração com poderes específicos para esse fim (art. 105 do CPC de 2015);
II – No caso de pessoa jurídica, não basta a mera declaração: é necessária a demonstração cabal de impossibilidade de a parte arcar com as despesas do processo. (grifo nosso)
Nesse mesmo sentido e alcançando inclusive as pessoas jurídicas sem fins lucrativos, a Súmula nº 481 do STJ declina que “faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais”.
Assim, quanto à pessoa jurídica o benefício da justiça gratuita não decorre de simples declaração, mas de demonstração inequívoca da fragilidade econômica. Este posicionamento se aplica inclusive para o pedido formulado pelo sindicato, quando atua como substituto processual[4].

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