O direito fundamental à duração razoável do não processo, por Luciano Ferraz

O Tempo do Direito, obra de autoria do belga François Ost, estuda a relação existente entre tempo e Direito, identificando uma quadra de dimensões temporais relevantes do ponto de vista jurídico, uma medida em quatro tempos: memória (que liga o passado), perdão (que desliga o passado), promessa (que liga o futuro), questionamento (que, em tempo útil, desliga o futuro)[1].
Tenho me proposto academicamente a compreender os efeitos dessa relação (tempo/Direito) sobre diversos contextos da administração pública, fundamentalmente pela pertinência do tema com o princípio da segurança jurídica[2]. Na obra de Ost, dita temática é tratada (não exclusivamente) com enfoque muito particular, sob a ótica do “tempo do perdão”, revelando a “capacidade que tem a sociedade para ‘soldar o passado’, liberá-lo, rompendo o ciclo da vingança e do ressentimento”[3].
Com efeito, institutos como prescrição, decadência, irretroatividade da lei (ou de sua interpretação), efeitos ex nunc da pronúncia de nulidade dos atos administrativos, anistia e remissão encontram-se intimamente conectados com a incidência do tempo sobre o universo jurídico: “O tempo não permanece exterior à matéria jurídica, como um simples quadro cronológico em cujo seio desenrolaria sua ação: do mesmo modo, o direito não se limita a impor ao calendário alguns prazos normativos, deixando para o restante que o tempo desenrole o fio”[4].
E nessa perspectiva, o tempo do Direito também se liga a aspectos de natureza processual, revelando a necessidade de atribuir segurança jurídica às partes envolvidas em processos administrativos e judiciais, como também submetidos a procedimentos com cariz investigativo (inquéritos penais, administrativos, civis).
Neste último âmbito, não é incomum se deparar com inquéritos (procedimentos preparatórios) instaurados há mais de década, sem que haja, de parte do dominus litis, a propositura das ações judiciais pertinentes. Por vezes, os inquéritos que inicialmente são instaurados para a averiguação de fatos determinados (ver, por todos, artigo 4º, I da Resolução 23/07, CNMP) transmudam-se, mercê de sucessivas “prorrogações”, em “rabilongos investigativos” focados nas pessoas, e não nos fatos[5].
Dispõe o artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição da República que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Note-se que a Constituição garante a celeridade processual como um atributo típico do compromisso do Estado e da sociedade com a efetivação da Justiça. E se a Constituição brasileira prevê como tal a duração razoável do processo (administrativo ou judicial), com muito mais razão a ausência dele, derivada de uma letargia investigativa infinita, está sujeita a um “ápice de estabilização jurídica”.
Advoga-se, assim, o direito fundamental à duração razoável do não processo, exatamente com a finalidade de trancar o curso ou determinar o não recebimento de ações judiciais fundadas em inquéritos idosos, cujas medidas instrutivas apropriadas não foram bastantes a convencer a tempo e modo nem mesmo a própria autoridade competente para presidir o procedimento.
Nesse sentido, convém aludir a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC 61.451/MG, que determinou o encerramento de inquérito policial aberto há mais de uma década sem conclusão, decisão essa que serve de base também ao trancamento de inquéritos civis e administrativos, com lastro na máxima ubi eadem ratio, idem jus:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. INVESTIGAÇÃO DOS CRIMES DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA, LAVAGEM DE DINHEIRO, FALSIDADE IDEOLÓGICA, CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO E OUTROS. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO. INVESTIGAÇÃO QUE PERDURA DESDE SETEMBRO DE 2002. INEXISTÊNCIA DE ACUSAÇÃO FORMAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.
1. Embora o prazo de conclusão do inquérito policial, em caso de investigado solto, seja impróprio, ou seja, podendo ser prorrogado a depender da complexidade das investigações, a delonga por aproximadamente 14 anos se mostra excessiva e ofensiva ao princípio da razoável duração do processo.
2. Mostra-se inadmissível que, no panorama atual, em que o ordenamento jurídico pátrio é norteado pela razoável duração do processo (no âmbito judicial e administrativo) - cláusula pétrea instituída expressamente na Constituição Federal pela Emenda Constitucional n. 45/2004 -, um cidadão seja indefinidamente investigado, transmutando a investigação do fato para a investigação da pessoa. Precedente.
3. Não se desconhece o fato de que a investigação é complexa, contando com indícios da prática de crimes de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, crimes contra o sistema financeiro e outros, por meio de associação criminosa atuante por quase vinte Estados da Federação, além da criação de "empresas de fachada", nacionais e estrangeiras, em nome de "testas de ferro" e "laranjas" das atividades desenvolvidas, bem como manobras contratuais e contábeis efetuadas para "maquiar" o patrimônio dos efetivos sócios das empresas.
4. Colocada a situação em análise, verifica-se que há direitos a serem ponderados. De um lado, o direito de punir do Estado, que vem sendo exercido pela persecução criminal que não se finda. E, do outro, da recorrente em se ver investigada em prazo razoável, considerando-se as consequências de se figurar no pólo passivo da investigação criminal e os efeitos da estigmatização do processo.
5. Recurso provido para trancar o Inquérito Policial n. 2002.38.01.005073-9, em trâmite na 2ª Vara Federal da Seção Judiciária da Bahia, sem prejuízo da abertura de nova investigação, caso surjam provas substancialmente novas. O trancamento deve abranger os demais investigados, que se encontram em situação fático-processual idêntica (RHC 61.451/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 14/02/2017, DJe 15/03/2017) (grifos meus).
A decisão judicial citada nada mais fez do que reconhecer que o princípio da duração razoável do (não) processo deve prevalecer sobre a intenção punitiva do Estado, quando longos anos se passaram sem que os fatos que ensejaram a instauração do inquérito tivessem se revelado, no mínimo, em indícios consistentes. O curso do tempo em casos desse jaez denota a predisposição intrínseca do inquérito ao arbítrio.
ratio decidendi do julgamento do STJ traduz, em obséquio ao princípio da segurança jurídica, mais um dos efeitos do tempo sobre o Direito: “O direito afeta diretamente a temporalização do tempo, ao passo que, em troca, o tempo determina a força instituinte do direito”[6].
O que se quer dizer afinal é que a razão de ser de tudo isso, conquanto muitas vezes possa ser ignorada (conscientemente ou não), parece singela: “O bom direito, como a boa consciência, passa pelo sono e pelo esquecimento”[7].


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