Sentenças, sentenças interlocutórias e decisões, por Jorge Amaury Maia Nunes

Em vários momentos já tivemos oportunidade de abordar questões relativas à linguagem do Direito, em especial à linguagem do direito positivo, que não possui compromisso com as coisas existentes no mundo físico, naquilo a que apelidamos linguagem sem correspondência de verdade. De fato, você não vê um direito subjetivo ao abrir a janela de sua casa, não vê uma preempção, nem, muito menos, uma desconsideração de personalidade jurídica. Pode, entretanto, ver uma folha, uma árvore, outro ser humano, as estrelas, ver, enfim, elementos que podem ser objeto da investigação de outras áreas do conhecimento.
Justamente porque não temos uma linguagem com correspondência física, o legislador sente-se à vontade para não ter compromisso com nenhum modelo até então estabelecido. Um instituto no Direito, em certo sentido, passa a ter certa “natureza jurídica” segundo a vontade do legislador, que se atreve, a todo instante, a procurar definir as coisas do Direito conforme suas transitórias verdades, ou segundo seu novo e definitivo modelo teórico, que busca representar, num perfil de Titãs, o melhor código de processo de todos os tempos do último fim de semana. Faz pouco caso do conselho advindo da experiência romana “ominis definitio in iure civilis periculosa est” e, também, da jocosa advertência do saudoso professor ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, em palestra proferida em Brasília, no final dos anos 80: se você batizar um boi de peixe, ele continuará boi, com a carne da mesma cor e, se for posto a morar embaixo da água, certamente morrerá!
Essas considerações vêm a pelo por conta das escolhas feitas pelo legislador processual brasileiro, a respeito do conceito de sentença e das cambiantes características que lhe são atribuídas, ao sabor e humor do legislador de plantão, com consequências de natureza vária, que serão mais bem explicitadas no correr destas linhas.
Sabido de todos que o Brasil é herdeiro do processo civil português que, de sua vez, sofreu influência do Direito Romano. Pois bem, o exame das fontes históricas indica a existência de sentenças, que poderiam ser definitivas ou interlocutórias, pelo menos desde o reinado de D. Afonso III (1248 a 1279), como se extrai deste fragmento: “estabelecemos que se alguém quysser appelar da sentença, que seja contra el dada definitiva que intralocutorya qualquer que seia appele logo ca tal quero que seia custume de meu reyno.” (Livro das Leis e posturas, p. 95).1
Nas Ordenações Afonsinas, também assim ocorria. Deveras, o Título 79 do Livro III, cuidava de sentença definitiva. O Título 71 tratava “Da Ordem que se deve ter nas Appellaçoens assy das Sentenças Interculutorias, como Defenitivas”, deixando claro que se tratava de duas espécies de sentença. Assim foi sempre nas duas outras Ordenações que se seguiram. O que variava no tempo era a discussão quanto à possibilidade, ou não, de recorrer das sentenças interlocutórias.
A distinção que havia era, como adverte o já citado MOACYR LOBO DA COSTA2, entre as diversas modalidades de sentença, não, entretanto, com relação à sua natureza mesma, mas sim para fins de deferir ou não o aviamento de recurso contra o seu teor.
A distinção entre sentença interlocutória e sentença interlocutória com força de defintiva, para efeitto de proibir a apelação contra as do primeiro tipo, consideradas como interlocutórias simples, e permiti-la contra as do segundo, é uma criação do direito romano medieval, decorrente da interpretação de textos do código theodosiano e das decretaes. (Lobão, segundas linhas).
Foi assim e com a terminologia adotada nas Ordenações (que aqui vigoraram por longo tempo) que essas instituições passaram para o direito brasileiro. Somente com o Regulamento 737, de 1850, foi abandonada a terminologia consagrada. Passou-se a falar, então, em sentença e, em um único momento, utilizou-se a expressão “despachos interlocutórios”, mais precisamente no art. 669, que trata das hipóteses de cabimento do recurso de agravo.
Código de 1939, primeiro código de processo da República, trata da sentença de forma robusta no Livro II, Título XI e, ao revés, utiliza a expressão despachos interlocutórios em apenas duas passagens: (i) no art. 20, para especificar que deverão ser praticados pelo juiz no prazo de 5 dias; e (ii) no artigo 288, para declarar que não têm aptidão para formar coisa julgada.
Código de Processo Civil de 1973 resolveu inovar e abusar das definições. O legislador trouxe para o texto do então novo Código de 1973 a ideia de “decisão interlocutória” e manteve, é claro, a de sentença, que foi igualmente definida. Na versão original daquele Código, estas eram as verba legis:
Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
§ 1º Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa.
§ 2º Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente.
Ocorre que BUZAID, responsável pela concepção daquele projeto, em pelo menos dois momentos, não foi fiel à definição que concebeu. Deveras, ao cuidar do incidente de falsidade documental, dispôs, no art. 395: A sentença, que resolver o incidente, declarará a falsidade ou autenticidade do documento.
Da mesma maneira, ao cuidar do processo de execução e das formas de realização do crédito exequendo, deixou especificado: Art. 718. O usufruto tem eficácia, assim em relação ao devedor como a terceiros, a partir da publicação da sentença.
Ora, nos dois casos acima assinalados, não se tratava de hipóteses em que o juiz praticasse atos de extinção do processo, o que sugeria tratar-se de decisões interlocutórias, apesar de apelidadas expressamente de sentença pelo legislador. Isso seria um problema de menor relevância se não houvesse, o autor do projeto, estabelecido um sistema recursal de correspondência biunívoca. Da sentença deveria caber apelação (ressalvadas as hipóteses constitucionais de cabimento de recurso ordinário) e da decisão interlocutória deveria caber recurso de agravo de instrumento. Pior ainda, o legislador houvera retirado do novo código o princípio da fungibilidade recursal (que constara no art. 810 do CPC/1939), na ingênua compreensão de que, dada a clara correspondência biunívoca antes citada, não haveria mais dúvida quanto ao recurso cabível, sendo ocioso falar em fungibilidade. A prática demonstrou, muito rapidamente, o quanto o legislador se afastara da realidade, sendo necessário ressuscitar o velho princípio.
Aduza-se a isso o fato de que o legislador percebeu a inutilidade de o processo de execução de sentença ensejar a instauração uma nova relação processual. Para correção desse desvio (que tinha o condão de tornar ainda mais morosa e inefetiva a jurisdição) houve um conjunto de reformas no texto do CPC/73, dentre as quais a relativa ao art. 475, que transformou a execução de sentença em simples fase do processo de conhecimento. Para tentar dar coerência ao novo sistema, o legislador modificou, em 2005, a definição de sentença que houvera cunhado.
Eis o novo texto:
Art. 162......
§ 1º Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei.

Não mais se tratava de pôr termo ou não ao processo, não havendo mais necessidade de extinção do processo, que, claro, em muitas circunstâncias, poderia ocorrer, especialmente quando se tratasse das situações previstas no art. 267, que regulava as hipóteses relativas às sentenças chamadas de meramente processuais – extinção do processo sem julgamento de mérito. Desnecessário dizer a dificuldade que se estabeleceu nas hipóteses em que ocorrida a incidência do ato do juiz sobre alguma das hipóteses do art. 269, que implicava deliberar sobre o mérito da causa sem que o processo houvesse sido extinto. Apelar ou agravar? Essa era a dúvida cruel.
No novo CPC/15, nova definição de sentença. Agora, dispõe o estatuto processual, literalmente:
Art. 203. ....
§ 1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.
Aqui, mais uma vez, o legislador deixou margem a dúvidas. Considere-se, para a demonstração do problema, que a cabeça do art. 203 já especifica que os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos. Somente essas três espécies de pronunciamento são admitidas pelo legislador. Fomos, então, conferir na lei: sentença(s) aparece 207 vezes no texto codificado; decisão interlocutória aparece apenas seis vezes; despacho 24 vezes.
O mais surpreendente, porém, é o fato de que o insulado termo decisão, não eleito como pronunciamento do juiz, aparece no CPC/15 exatas 265 vezes (além das seis em que vem acompanhada do qualificativo interlocutória). Decisão parece ser uma espécie de coringa que o legislador utiliza quando não sabe exatamente o que quer dizer. Na maioria das vezes, parece tratar-se de decisão interlocutória. Em outras, entretanto, tem marcante coloração de sentença. Fiquemos apenas com dois exemplos, por economia de tempo e de espaço. Vejam esta hipótese:
Art. 316. A extinção do processo dar-se-á por sentença.
Art. 317. Antes de proferir decisão sem resolução de mérito, o juiz deverá conceder à parte oportunidade para, se possível, corrigir o vício.
Passaria na cabeça de alguém que a decisão sem resolução de mérito de que trata o art. 317 é alguma interlocutória? Nem amando muito (!), diriam os mais jovens. Com efeito, a hipótese é claramente de sentença meramente processual, quando por outro motivo não seja, em homenagem aos velhos ensinamentos da hermenêutica tradicional no sentido de que “o direito não se interpreta por tiras.”
E esta outra hipótese, igualmente evidente:
Art. 354. Ocorrendo qualquer das hipóteses previstas nos arts. 485 e 487, incisos II e III, o juiz proferirá sentença.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput pode dizer respeito a apenas parcela do processo, caso em que será impugnável por agravo de instrumento.
caput do artigo transcrito cogita somente de sentença, correto? O parágrafo único reporta-se à decisão a que se refere o caput. Há aí um pronome relativo, o qual substitui o nome já mencionado (sentença), logo, a decisão é uma... sentença!
A verdade é que o legislador do CPC/15 ficou preso à ideia de BUZAID no sentido de que para cada tipo de decisão somente poderia haver um tipo de recurso, fato que terminaria por criar transtornos na prática jurídica, haja vista que o direito brasileiro se tem mostrado avesso a uma “apelação por instrumento”. Se esse o problema, bem que o legislador poderia retomar o modelo do Código de 1939, que preconizava a apelação contra as sentenças definitivas e o agravo de petição contra as sentenças terminativas, além de permitir a fungibilidade recursal em caso de dúvida objetiva.
Essa hesitação do Código/15 sugere outros desdobramentos quando consideramos a existência, na Parte Especial, de Procedimentos Especiais (Livro I, Título III). Sobre isso, uma menção específica merece ser feita.
Aqui neste espaço, cuidamos da ação de exigir contas, em dezembro de 2015, ainda antes da entrada em vigor do CPC/15. Naquela oportunidade, deixamos consignado que, na ação de exigir contas, o § 5º do art. 550 trata da sentença que marca o eventual fim da primeira fase de conhecimento dessa ação especial. Julgado procedente o pedido, o réu será condenado a prestar contas no prazo de quinze dias. Prestadas as contas, prossegue-se na ação, em outras atividades de cognição, que desaguarão em nova sentença de mérito, agora sobre as contas que foram prestadas. Aliás, a única importante especificidade que se observa na ação de exigir contas é justamente a bipartição da fase cognitiva a exigir a prolação de duas diferentes sentenças para esta ação de natureza cominatória.
A respeito do assunto, DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES3 assinala com perfeição e clareza didática:
A grande especialidade procedimental da ação de exigir contas é a existência de duas fases procedimentais sucessivas, sendo a primeira para se discutir o dever de prestação das contas e a segunda para discussão do valor do saldo devedor. Cada fase será decidida por uma sentença, o que torna essa demanda singular, pois o mérito será necessariamente decidido em dois momentos distintos. São duas as sentenças, mas a petição inicial é uma só, daí a necessidade de se fazer a cumulação de pedidos já referida (cumulação sucessiva).
JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, exatamente no sentido por nós sustentado no final de 2015, também sustenta a existência de duas sentenças na fase cognitiva desse procedimento especial:
A sentença proferida na ação de exigir contas tem natureza condenatória, seja em relação ao dever de prestar contas, seja em relação ao valor reconhecido como devido por uma parte à outra.4
Em comentários sobre o novo COC, e percorrendo igual vereda, TERESA WAMBIER et alli5ensinam, expressamente:
Da sentença condenatória à prestação de contas caberá recurso de apelação a ser recebido no duplo efeito. Verificado o trânsito em julgado da sentença condenatória à prestação de contas, caberá a deflagração da fase de cumprimento de sentença, quando então o réu será intimado a prestar contas em 15 dias.
Como nada em Direito parece possuir o signo da unanimidade (a não ser exatamente a afirmação de que nada é incontroverso), já há posicionamentos em sentido contrário, sustentado que a primeira decisão (a que concerne ao dever de prestar contas) será uma interlocutória (essa invenção do código BUZAID) e que, portanto, não terá natureza jurídica de sentença. É claro que esses posicionamentos partem das definições que ficaram ao sabor dos humores legiferantes. A dúvida é saber se, apesar da ausência de correspondência de “verdade física” de que sofre a linguagem jurídica, o legislador pode tudo, i.e., pode definir as coisas do jeito que lhe praza.
Parece que não. Recordo que, sob a égide do Código passado, o legislador afirmava que a apreciação da ausência das condições da ação implicava a prolação de sentença sem julgamento de mérito (a nosso ver, julgamento de improcedência prima facie é claramente decisão de mérito) que não era capaz de produzir coisa julgada material. Dizia, por outro lado, no art. 485, que somente cabia ação rescisória das sentenças de mérito, com o que essas decisões não poderiam ser rescindidas.
A jurisprudência pátria, entretanto, findou por admitir a rescisória para essas situações, ao perceber que natureza jurídica não é simplesmente ditada pelo texto da lei. Afinal, o legislador não pode, apenas com a substituição do velho nome de batismo, alterar a essência das coisas. Se insistir em batizar o boi de peixe e se tentar fazê-lo como peixe viver, matará o animal por afogamento.
O mesmo deve ocorrer com a sentença que, na primeira fase, condena a prestar contas. Pode ser chamada de decisão à vontade, mas deve ser apelável. Se a leitura restritiva se impuser, o que não parece minimamente razoável, que se outorgue aos patronos das partes a possibilidade de sustentação oral.

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